23.6.08

Warszawa Ochota, a estação soturna quase no final da Aleje Jerozolimsky, bem mais discreta que a estação central. No autocarro 175, antes da paragem indicada, pude reparar no homem com a camisola desportiva de marca Naike, com as cores da selecção polaca. Nas costas o número 2,5 e duas letras ZB. Era ele de novo, Boniek. Deixara o bigode e adoptara rastas. Saímos por portas diferentes do enorme autocarro articulado. Esperámos que ele avançasse e pudemos então cumprimentar-nos desde que, na Vidigueira, chegara a temer o pior. "E as empadas?" "Zbigniew, mais do que as empadas temi o pior..." "Estes jogadores que por aqui purulam... novos agentes..." "Pululam, Boniek." "Deixa lá a correcção linguística. O importante é que Chalana não é Chalana e o Homem-Pluto é um antigo mordomo do Arturo Tijuana, o mais temível agente equatoriano." "Sim, sem dúvida..." " E a questão das latas de sardinha? Como ficou?" "A BIRRA tratou de tudo a estas horas mas a fórmula..." "Dessa trato eu." Amanhã, por detrás da Sinagoga. Irei disfarçado de toupeiro." "Toureiro, Boniek..." "Não, de toupeiro, é mais discreto! O que faria um toureiro perto da Sinagoga em Varsóvia?!" E tinha razão. Restaria saber quão normal seria encontrar uma toupeira macho perto da Sinagoga em Varsóvia. Boniek desceu as escadas que conduziam à já escura estação Ochota, não sem antes comprar um pequeno ramo de flores: "Para a minha Bonieka..." Do outro lado da praça Artura Zawiszy , em frente ao multicolor e nada discreto Hotel Jan III Sobieski, Maniche e o Pseudo-Chalana conversavam e trocavam displicentemente cromos do Euro 2008. As peças do puzzle compunham-se. Apenas o Homem-Pluto me deixava de sobreaviso. Tudo o resto seria desmascarado em breve, perto da Sinagoga.

1.6.08

Aeroporto de Bruxelas. Ao longe, na passadeira rolante, Chalana e o homem-Pluto. Perdi-os de vista pouco depois, felizmente. No recanto que a porta de embarque A40 faz, uma cara familiar. Disfarçado de cidadão do Togo, com um boné verde alface na cabeça e uma Tshirt “Je suis citoyen de Togo et fier d’être noir.” A tiracolo uma sacola cheia de postais do Togo com um autocolante “Travelling to Finland”. O inconfundível Dimitri Alexeiev, companheiro de formação, da primeira fornada do Grão de Bico. Tirou do bolso das calças um objecto que reconheci ser o osso que Fernando Chalana tinha no colo, dentro do avião. Era oco e, do seu interior pude retirar um pequeno frasco de vinagre e um talão de compras na ‘duty free shop’, de um frasco de gel de banho do Noddy. No verso “Quem lhe comeu a carne que lhe roa os ossos.” Os provérbios...Despedi-me rapidamente do Alexeiev, fui à casa de banho e segui as instruções de D. Lilita: o vinagre por sobre a declaração de amor de Aníbal à temperamental cozinheira da Costa Vicentina revelava a senha a entregar ao embaixador da Suécia em Varsóvia: “Recebe o corta-unhas como prova da minha afeição.” Nos altifalantes do Aeroporto de Bruxelas um breve flash de ‘Love will tear us appart’... um Ian Curtis, ali? Aquilo tinha o dedo de...
Já a bordo do Avro RJ 85 da LOT, ao meu lado um cidadão polaco de volta a casa, duas filas à frente, Maniche disfarçado de Lech Walesa: o bigode e uma faixa do Solidariedade na manga esquerda do blaser aos quadradinhos em tons de azul turquesa e verde seco. Estava na hora de ser o Toutinegra pro-activo de outros tempos, mais ‘old school’, menos dependente destes novos agentes-jogadores de futebol reformados e no activo. Formar agentes por Reconhecimento e Validação de Competências!? Novas oportunidades!? Maiores de 23!? Varsóvia será o palco deste ajuste de contas. Até breve, muito breve, na Aleje Jerozolimsky.
Entrei cautelosamente no restaurante. Sabia do ritual de acesso às mesas e às boas graças da dona e cozinheira-mor. No altar da sua bancada, junto do seu fogão, fiel amigo imaculado, Dona Lilita preparava o seu sábio arroz de peixe. Este forçado almoço em Vila do Bispo, deixando para trás Aljezur, simbolizava o fim de todos estes meses de recolhimento na Praia do Monte Clérigo, Entegara a Demóstenes uma cópia autografada da Biografia não oficial de Eusébio, da autoria de Manuel F. Alegre, exemplar número três de uma limitadíssima tiragem de oito. Duas sentidas lágrimas correram pela face de Demóstenes: “Se eu mandasse, ainda jogava... o Pantera...” Recebera, em troca, a senha para o Café Correia: “Se queres comer, não venhas a correr.” Debitei então a senha a Dona Lilita que, tendo esquecido as palavras mágicas repetia sem cessar “Se não tens paciência nem vale a pena sentar! O meu arroz é para sair bem feito!” Deixei-a falar, do alto do seu metro e quarenta e oito e imbuída do poder da sua varinha-colher-de-pau mágica. Tive de interromper, contudo, arrancando a diva da seu fervor místico e disciplinador: “Isto é a senha, Dona Lilita!!! Sou o Toutinegra Futurista!!” “Ah... Já podias ter dito, moço! Vamos ao escritório.” Gritou ao marido que continuasse a confeccão do pitéu e carregou num botão violeta: “É a música ambiente. Assim, ninguém ouve a gente, moço! Sou pouco esperta, sou!” E era, à sua maneira. O roufenho sistema sonoro perfurava os tímpanos com um “Jesus, Jesus, Jesus!”, intercalando cada chamada do Cristo com uma sequência de palminhas ritmadas. Frei Hermano da Câmara, no seu vibrato místico e épico, pelo menos para a minha agente de ligação, ia avançando à medida que os nossos passos se detinham às portas do escritório de porta vermelha, a Jerusalém Celeste de Lilita e esposo. “Este moço canta que até me arrepia toda!” “Também a mim, Dona Lilita, também a mim...” Agora entra, moço, e cala-te mas é!” A porta fechou-se atrás de nós. Calei-me, mesmo que nem sequer tivesse tentado falar. À minha volta, os cortinados do Benfica que forravam a totalidade das paredes, sucedâneo de papel de parede, faziam o conjunto perfeito com uma colecção de calendários da Adega Cooperativa de Lagos. Retirou da escápula o calendário de 1977, desviou o cortinado e, de um pequeno orifício na parede, retirou um rolo de papel pardo, com nódoas de azeite e uma monumental lambuzadela de tomate: “Passa para cá o livro do Eusébio e toma lá esta charenga!” Dei-lhe o exemplar número sete, em troca do rolo de papel. Desenrolei-o e, por sobre o cinzento e as nódoas, podia ler-se “Para Lilita, com amor”, assinado Aníbal e com a inscrição final “Boliqueime, 1960”. Olhei para ela, boquiaberto. “Cala-te e está calado, mas é! Não é nada do que estás a pensar, moço! E o meu arroz de peixe pode levar um homem à loucura... Molha o papel em vinagre quando chegar a hora. Vais perceber. E agora vamos ao que interessa!” Arroz comido, caminho percorrido até ao aeroporto de Faro, destino Varsóvia, via Bruxelas. Na fila 17 do Airbus da Brussels Airlines, Fernando Chalana. A seu lado um homem com uma inusitada máscara de Pluto. Chalana olhou-me de lado, inclinou a cabeça para o centro do corredor e murmurou à minha passagem ”Não é com vinagre que se apanham moscas, nem aves, nem pássaros, nem outros mamíferos.” Sentei-me umas filas mais atrás e meditei nas palavras de Chalana: quais seriam agora os critérios de recrutamento? Chalana? Ele mesmo que acabara de debitar mais uma pérola a um cidadão polaco que passava: “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura, ou faz mossa, ou aleija, ou coiso.” No seu colo, agora à vista, o que parecia ser um osso de brincar, talvez do homem-Pluto... A Chalana já lhe tinhamos visto o bigode, o olhar vago e o discurso errático. Provérbios ainda não. Mais uma prova viva de que o ser humano é versátil... ou talvez não...