14.5.07

O Alentejo inspirava-me, sempre me inspirou. A entrada em Évora, vindo do sul, de Beja, aquele perfil... fazia-me lembrar, indubitavelmente, a minha prima Acácia, deitada de barriga para cima. Um belo dia, já eu andava nestas lides de agente secreto, fui dar com ela deitada, na já referida posição, a roncar na cama, depois de almoço. Acordou subitamente e disse-me: "Olha o meu primo espião... Anda cá, filho. Deixa-me revelar-te um segredo. Há mais de vinte anos, o tio Silvério Pechincha Marujo deixou uma fortuna em conservas de sardinha. O irmão, meu pai, vendeu-as todas e embolsou o dinheiro. Depois, abandonou a minha mãe e fugiu com uma espanhola para Ceuta, onde morreu. É importante que saibas isto, com a vida que levas." Agradeci-lhe, céptico relativamente às possibilidades de relevância daquela informação na minha vida, tanto na pessoal como na familiar. Avancei, rumo ao coração da Évora histórica, e senti-me em casa. Estacionei o carro no largo da Sé, a poucos metros do templo romano que, em tempos chegou a ser um mercado de carne, um matadouro, algo assim. Calha a tudo e a todos, momentos de dignidade duvidosa. Desci as escadinhas do Largo D. Miguel de Portugal e esperei. Segundos depois, senti passos. Era um transeunte, um dos poucos avistáveis, àquela hora, na cidade quase deserta. Subitamente, voltou-se para trás e perguntou: "Desculpe, tem horas?" "Lamento mas não..." "Ah, Toutinegra!" "Quem acha que encontrou o Toutinegra?" "Arquimínio Siquenique, da classe de 45." "E como posso confirmar a veracidade do que afirma?" "Sei da tatuagem..." Corei de vergonha. A cena da tatuagem costumava ter aquele efeito. A minha sogra, no quinto ano do meu aniversário de casamento, tatuou o meu nome de código na sua nádega esquerda. "Ao meu querido genro, por nunca cá estar, pus para sempre o seu nome, no seu devido lugar." Dito isto, levantou a saia e mostrou publicamente a nádega, na qual se podia ler: "Ao meu genro Toutinegra, nas nalgas, até que a terra me coma." Assim, tal e qual... Poderia viver três vidas, percorrer o mundo três vezes... As palavras grotescas e tresloucadas, tatuadas num mar de celulite, para sempre, bem para além da terra cumprir a sua função... "Como sabes disso, Arquimínio?" "Tu não queres saber..." E não queria. Isto podería indiciar, contudo, que o Arquimínio seria uma alta patente, comum entre agentes alentejanos. Pareceu-me, todavia, agitado demais, no limiar do frenético, os olhos sempre muito rápidos e os dedos a tamborilar no ventre, pouco comum entre agentes alentejanos. Talvez o facto de ser da safra de 45 explicasse isso... Fomos, no furgão dele, até à estrada para Arraiolos, sempre ao som desconcertante de Leonel Nunes, o Homem do Garrafão, nas palavras extasiadas do Siquenique. Perto do cruzamento para S. Bento de Castris, encostou, do lado direito da estrada, e disse-me: "Temos que esperar pelo Zé Carlos. Ele não deve demorar." "Já o conheces?" "Sim, mas hoje deve vir disfarçado de índio peruano. Aproveitamos e vamos disfarçar-nos também. Toma, tu ficas de campino e eu de pescador da Nazaré." Eu fiquei dentro do furgão e ele foi para trás de um arbusto dizendo: "Agora, Toutinegra, vou lá fora mudar de fatiota e mudar a água às azeitonas." Olhei para trás e a caixa de carga daquela Bedford não enganava: latas de sardinha, cheias de ferrugem, preenchiam o chão, uma fortuna em latas de sardinha... Tinha segundos para reagir. Olhei pelo vidro de trás e reconheci, ao fundo, por entre os arcos do Aqueduto da Água de Prata, o perfil da cidade: outro ponto cardeal, outras coordenadas, à mesma o perfil da prima Acácia. As peças do puzzle começavam a fazer sentido. Tranquei a porta, fiz uma ligação directa, inverti a marcha antes que o Arquimínio pudesse fazer o que quer que fosse, mais a mais com as calças do pescador em baixo. Deixei a Bedford no largo da Sé, entre o Palácio da Inquisição, e o Palácio do Vimioso, fiz uma incisão vigorosa em cada um dos pneus e desapareci no meu inefável e cúmplice Volvo 240. Tudo começava a aquecer, até o tempo. Precisava de guarida e de tempo para pensar nestes surpreendentes acontecimentos e voltar ao domínio completo da situação. Senti que, por momentos, perdera o estatuto de narrador omnisciente da minha própria vida e esse era um claro sinal de alarme. Estava na hora de ir ter com o meu compadre Chico Mogango. Ele, e a minha comadre Arlete Pavanas haviam de me ajudar. Não era em vão que os tinha conhecido, nos idos de 1967, como 'BIRRA nº1', brigada de intervenção rápida, rápida, alentejana. E mais não digo, pelo menos por agora.