2.10.09

Recitava Rosindo Pelourinho uns desgarrados versos de Baudelaire, exactamente no momento em que o encontrei no coro alto da capela. Gostava de se recolher ali, naquele Convento do Desagravo. Desagravava as suas agruras e recordava, com fortes laivos de masoquismo, o desaire estrondoso do amor primeiro. Feliciana Vaqueirinho, natural de Porrinheira e um hino escultórico às canónicas proporções do corpo, deixou-o a ele, Rosindo, natural de Vila Pouca da Beira e um hino a algo que, de momento, não me ocorre, com aquilo a que o povo insiste em classificar como 'um monumental par de cornos' e um balde de latão para aparar as lágrimas. Era assim violentamente interrompido um primordial amor iniciado no baile de Verão de Vale do Coito. "La sottise, l'erreur, le péché, la lésine,/Occupent nos esprits et travaillent nos corps." "Então, Rosindo, agarrado a isso..." "Sim, já andei no Apollinaire... Sabes que sofreu, como eu... Annie et La Chanson du Mal-Aimé..." Tentando esquecer Feliciana, entregou-se Rosindo a Coimbra, onde mergulhara na literatura francesa e em todo o tipo de álcool, desde aguardente de medronho, tinto maduro, álcool da farmácia a 70º e a 90º, misturado metodicamente com chá de carqueja. "Quando li Les alcools, Toutinegra, fiquei agarrado a isto: "Les anges les anges dans le ciel..." "Rosindo!!! Compõe-te, homem! Chega de lamúrias e lamechas! Chega de Francês! Até gosto e tal mas... vamos ao que interessa!" "Tens razão... desculpa." "Bem, conta-me o que sabes do gajo que viste em Estoi!" "Pois, ele estava nas ruínas de Milreu e retirou um papel de dentro de um buraco no chão. Desatei a correr atrás dele e ele deitou-me a língua de fora." "Sim... e tu..." "Eu fiquei furioso e com vontade de rir, ao mesmo tempo..." "Não é isso! O que fizeste?" "Nada. A Gilda é que o apanhou à porta e passou-lhe uma rasteira." "Quem é a Gilda?! "Não sei bem, acho que se apaixonou por mim na noite anterior e fomos os dois..." "Já percebi... Então e o papel do holandês?" "Eu apanhei-o! O tipo ficou meio zonzo com a queda e a Guida ainda lhe caiu em cima." "A Guida?" "Acho que sim." "Mas tu falaste em Gilda..." "Ah, pois é! Era Gilda, acho eu. Ficámos com o papel e deixámos o tipo atado nas ruínas. Atámo-lo com fio de pesca e deixámos uma etiqueta a dizer: 'O que tu queres sei eu!' "Porquê? Desde quando pomos etiquetas e atamos pessoas com fio de pesca?" "Pois, nãosei. Mas foi ideia da Gilda e a seguir fomos os dois..." "Sim, calculo. E quantos litros de medronheira tinhas bebido?" "És pouco esperto és... Entre mim e a Gilda, mamámos uma garrafinha ao pequeno-almoço..." "E o papel?" "É este: diz aqui 'torta de alfarroba' mas é para ninguém dar por nada. É 'bolo de requeijão', vê-se por baixo, a azul. Sabes que a Gilda tem umas ma..." "Chega! Poupa-me aos detalhes picarescos, rapaz. Estás na última..." "Mas é que tem umas mãos de fada... faz cá umas massagens, mon ami..."
Despedi-me do Rosindo, dei baixa dele como operacional: demasiado álcool, demasiadas Gildas e Guidas, demasiada literatura! Pragmatismo e sensibilidade: um agente no fio da navalha... este, pelo menos.