2.10.09

Recitava Rosindo Pelourinho uns desgarrados versos de Baudelaire, exactamente no momento em que o encontrei no coro alto da capela. Gostava de se recolher ali, naquele Convento do Desagravo. Desagravava as suas agruras e recordava, com fortes laivos de masoquismo, o desaire estrondoso do amor primeiro. Feliciana Vaqueirinho, natural de Porrinheira e um hino escultórico às canónicas proporções do corpo, deixou-o a ele, Rosindo, natural de Vila Pouca da Beira e um hino a algo que, de momento, não me ocorre, com aquilo a que o povo insiste em classificar como 'um monumental par de cornos' e um balde de latão para aparar as lágrimas. Era assim violentamente interrompido um primordial amor iniciado no baile de Verão de Vale do Coito. "La sottise, l'erreur, le péché, la lésine,/Occupent nos esprits et travaillent nos corps." "Então, Rosindo, agarrado a isso..." "Sim, já andei no Apollinaire... Sabes que sofreu, como eu... Annie et La Chanson du Mal-Aimé..." Tentando esquecer Feliciana, entregou-se Rosindo a Coimbra, onde mergulhara na literatura francesa e em todo o tipo de álcool, desde aguardente de medronho, tinto maduro, álcool da farmácia a 70º e a 90º, misturado metodicamente com chá de carqueja. "Quando li Les alcools, Toutinegra, fiquei agarrado a isto: "Les anges les anges dans le ciel..." "Rosindo!!! Compõe-te, homem! Chega de lamúrias e lamechas! Chega de Francês! Até gosto e tal mas... vamos ao que interessa!" "Tens razão... desculpa." "Bem, conta-me o que sabes do gajo que viste em Estoi!" "Pois, ele estava nas ruínas de Milreu e retirou um papel de dentro de um buraco no chão. Desatei a correr atrás dele e ele deitou-me a língua de fora." "Sim... e tu..." "Eu fiquei furioso e com vontade de rir, ao mesmo tempo..." "Não é isso! O que fizeste?" "Nada. A Gilda é que o apanhou à porta e passou-lhe uma rasteira." "Quem é a Gilda?! "Não sei bem, acho que se apaixonou por mim na noite anterior e fomos os dois..." "Já percebi... Então e o papel do holandês?" "Eu apanhei-o! O tipo ficou meio zonzo com a queda e a Guida ainda lhe caiu em cima." "A Guida?" "Acho que sim." "Mas tu falaste em Gilda..." "Ah, pois é! Era Gilda, acho eu. Ficámos com o papel e deixámos o tipo atado nas ruínas. Atámo-lo com fio de pesca e deixámos uma etiqueta a dizer: 'O que tu queres sei eu!' "Porquê? Desde quando pomos etiquetas e atamos pessoas com fio de pesca?" "Pois, nãosei. Mas foi ideia da Gilda e a seguir fomos os dois..." "Sim, calculo. E quantos litros de medronheira tinhas bebido?" "És pouco esperto és... Entre mim e a Gilda, mamámos uma garrafinha ao pequeno-almoço..." "E o papel?" "É este: diz aqui 'torta de alfarroba' mas é para ninguém dar por nada. É 'bolo de requeijão', vê-se por baixo, a azul. Sabes que a Gilda tem umas ma..." "Chega! Poupa-me aos detalhes picarescos, rapaz. Estás na última..." "Mas é que tem umas mãos de fada... faz cá umas massagens, mon ami..."
Despedi-me do Rosindo, dei baixa dele como operacional: demasiado álcool, demasiadas Gildas e Guidas, demasiada literatura! Pragmatismo e sensibilidade: um agente no fio da navalha... este, pelo menos.

19.8.09

O veredicto no verso da tela de Edmundo Tonaco: antes de ir a casa, o Butão. Segui para Dhaka, Bangladesh, e daí até Paro, num exíguo e anacrónico pássaro de ferro da Druk Air, Royal Bhutan Airlines, "Kingdom in the Sky", 'with diamonds'...
A chegada ao aeroporto, em Paro, foi normal, seja lá isso o que for. Tinha de ir até à fronteira terrestre, em Phuntsoling, e comprar o passe de acesso a Bumthang. À minha espera o muito amarelo e alegadamente desportivo turco Anadol STC 16, de 1975. "It is the number 176, the last one from the Otosan factory!! Glory, glory!!" Desenhado por Eralp Noyan, este "Sports Turkish Car 1600", uma mutação algures entre os Ford Cortina e Capri, seria tudo menos o carro ideal para percorrer o mais do que discreto Butão, por todos os motivos. Além do mais, o facto de ter esta viatura chegado até aqui era um feito algo estranho. Arun 'Dzongkha', orgulhoso descendente dos Lhotshampas e cuja alcunha se devia ao facto de ser um conceituado professor de dzongkha, a língua nacional, em Bumthang, via filmes do James Bond compulsivamente e entendeu ser esta a melhor solução para percorrer as estradas do reino: um desportivo retro... Paguei a Arun dois milhões de ngultrum por um exemplar do single em vinil da Suzi Paula "Visitas". "This is a heavenly voice, the portuguese Carly Simon." Nunca tinha visto as coisas por este prisma, felizmente... nem Suzi, nem Carly... Tinha que chegar em pouco tempo a Thinphu. Aí, sendo 2 de Julho, aproveitaria a agitação provocada pela comemoração do aniversário de nascimento do Guru Rinpoche para no 'Where-Else', bar do hotel Druk, encontrar o meu agente de liaison, como diria o nosso ex-Mossad Zeev. Encostado ao balcão, um homem dotado de um farfalhudo bigode e de patilhas volumosas, disfarçado de campino ribatejano, fez-me um ostensivo 'pschhh!!!': tudo discreto no Butão... até o campino de tez nepalesa. Aproximei-me do espécime e este entregou-me o objecto-mensagem, no meio de uma grande trapalhada de copos no chão e um par de cuecas de senhora pendurados na camisa, presa a renda num botão meio partido. Tratava-se de uma touca holandesa do século XVIII, assassinada com o seguinte bordado: Amsterdamsche Football Club Ajax. No forro, um voucher de noite gratuita no sofrível viveiro de baratas Karma Tobden Bumthang Lodge. Já em Bumthang, enquanto me preparava para um breve momento de descanso, ouvi, vindo da janela, um quase sussurado "Abre, Toutinegra! Sou eu, o Badana!" Era Zacarias, o nosso 'merlo eléctrico', um dos meus companheiros de academia e filho do melhor amigo de Grão de Bico, Francelino Badana. "O que fazes por aqui?" "Tens o single da Suze?" "Tenho... E foi caro! E não digas Suze..." "Pois, foi caro mas também sabes o que tens aí! Essa mulher a cantar é uma força da natureza! E é boa..." "Chega! Pois... talvez..." Suzi Paula era estrela no Butão, curioso reino este... "E a touca dos Países Baixos?" "Sim, é estranha... e para que a queres?" "Necessito dela para obter a tua autorização de saída! Tens de regressar a Paro e apanhar o avião!!" "Pois, tens razão." Percebi na sua voz a hesitação que o denunciava. Há bastante tempo que os serviços secretos chineses o vigiavam. Em Thinphu avistei, em pose de sedução junto de uma stripper norte-coreana, um dos capangas do tempo de Liu Fuzhi. Estava disfarçado de empresário espanhol da construção civil e obrigara a Stripper a tratá-lo por Manuel Ramirez ou Señor Ramirez. O 'Señol Lamilez' carecia de inteligência, da mais básica e seguia a sua presa como um predador ruidoso... Zacarias Badana sentia, com fundamento, muito medo. Rumámos a Paro, a bordo do muitíssimo amarelo Anadol STC 16, eu ao volante, Badana no acanhado compartimento destinado às bagagens. Meti-o no avião, rumo a Amesterdão, e saí, por terra, do Butão. Tive de dar uma foto autografada de Manuela Ferreira Leite em fato de banho, em Manta Rota ao miope guarda de fronteira, convencendo-o de que se tratava de uma tia-avó de Brigitte Bardot em Cannes. O Anadol resistia e, em breve, poderia chegar a Itahari, no Nepal. Levantava o avião, em Kathmandu e pude enfim ver o pequeno livro que a hospedeira me colocara no bolso direito do casaco. Na contracapa de Sete receitas nepalesas de coelho fingido em papelottes, do Chefe Joseph Pinto de Souza, as coordenadas: 40°18'26.83"N; 7°55'3.29"W. Do Butão para casa, at last...

17.8.09

Passei aquela noite inquieto! Talvez fosse o velho colchão de lã, os percevejos que faziam lembrar um dia de peregrinação em santuário afamado, as aranhas de diferentes espécies tecendo e entretecendo os seus condomínios de luxo. Aquela velha casa do Arquimedes Buchanga era, em bom abono da verdade, um estádio olimpico de ácaros, uma espelunca repleta de bicharada e tecidos andrajosos mas um refúgio à prova de qualquer manobra de contra-espionagem ligeira ou profunda (um dia teorizarei sobre estes e outros conceitos).
Apetece-me hoje voltar àquele dia: é assim a amizade. Conheci o Arquimedes em Coria. Andara a monte pela Sierra de Gata, depois de uma suspeita de crime passional alegadamente cometido em Badajoz. Na altura, a paixão por Conchita Luengo e a sua também alegada traição tinha levado Buchanga à loucura. "Buchi", como era conhecido, fugiu clamando a sua inocência, gemendo e chorando num vale de lágrimas... Estando eu em Coria e sabendo que Conchita tinha sido contratada pela nossa congénere peruana, foi com naturalidade que descobri tratar-se de mais uma vítima do torcionário extremeño Casimiro Lomado. Veio Buchi ter comigo a Descargamaría , no vale do rio Arrago. Seguimos depois até Moraleja, onde recolhemos o alguidar com a carne já temperada para a festa. "Esta ternera é fantástica! Estou satisfeito por teres vindo salvar-me. Quem és tu afinal?" Sabia que viria esta pergunta, repetida anos mais tarde até à exaustão no genérico da série 'Zé Gato'... "Vou-te dizer apenas o que necessitas saber: estás livre de qualquer acusação e és um tipo versátil, um camaleão da serra!" Aceitou entusiasmado a proposta de formação e integração dos nossos quadros. Frequentou todos os módulos e executou todas as missões probatórias com afinco. Arquimedes impulsionara a sua vida com convicção. Foi no largo da Catedral, em plena Fiesta de los Toros de San Juan, num tórrido 23 de Junho, que selámos o nosso acordo com um abraço fraternal e um forte odor a suor.
Voltara eu a Coria, encruzilhada tremenda, para sob protecção da discretíssima e ultra-fiel unidade de Buchanga poder entregar o tubo número 23, recuperado no Lesoto. Nas traseiras da igreja paroquial de Robledillo de Gata, esperava-me Alonso Godoy. "Toma. É o tubo 23." Godoy, numa excitação quase pueril, murmurava "No me lo creo, no me lo creo, el 23..." "Acalma-te, Godoy! Porra!! Agora, preciso que me dês a prova, já!" "Entregou-me uma folha de papel pardo na qual estava escrita a letra de 'La Campanera', tema celebrizado por Joselito, Jose Jiménez, o pequeno rouxinol. E era esse o som pouco discreto que brotava do velho e pouco estimado Seat Fura. O tubo 23, contendo a tela de Edmundo Tonaco, 'Sementes de sésamo ao sol de Nagasaki', seguiria em direcção a Amesterdão. No verso da tela as coordenadas da próxima etapa. Joselito continuava estranhamente a ecoar na minha mente como uma bola de bilhar às três tabelas: "Ay! Campanera... aunque la gente no crea, tu eres la mejor de las mujeres porque te hizo dios su pregonera. " Rouxinóis e toutinegras... Ay campanera...

5.8.09

Seguimos pois o rasto de azeite. Veio até à minha memória, como brisa perto de estação de tratamento de águas residuais, a minha intriga familiar com as latas de conserva...
No cruzamento à entrada de Thabe Tseka, um homem com cachecol e gorro da 'Manilhas Plumbers' fez o sinal de boleia. "É o meu compadre Tomba Tukha. Converteu-se recentemente ao catolicismo. É uma história de amor imposível por uma lançadora de peso e ex-modelo da Suazilândia que se converteu e ingressou na Congregação de Santa Brígida... É ele quem nos vai dar as munições. Tens a foto." Tirei da segunda sub-algibeira interna a fotografia do Embaixador da Áustria em Madrid com uma enorme ratazana de quatro quilos, proveniente do Convento de Mafra na mão, qual troféu de caça. Em troca, um sorriso e uma caixa da importada Chibuku Beer com doze embalagens de Limpol, detergente concentrado para a louça. Chegados ao final da subida, uma casa apalaçada mostrava a imponente fachada. O cheiro a azeite era cada vez mais intenso. Estava na hora filtrar toda aquela gordura, colocando os cones de papel pardo nas narinas. Utilizei a minha 'keytuga', made in Azaruja, pelas mãos de Joaquim Franzina: o portão cedeu em dezassete segundos, menos cinco do que o tempo de activação dos Câmaras de vigilância. Ao fim de vinte e dois segundos à porta, dois dos 'apóstolos de Hermano da Câmara' assumiriam o posto de vigia, implacáveis. Entrámos e irrompemos aspergindo detergente sobre os pontos de fuga do azeite e deparámo-nos com a fortaleza vazia. No átrio-biblioteca jaziam, espalhadas pelo chão, 666 cópias contrafeitas, reles fotocópias, das Lettres d'amour d'une religieuse portugaise, de Mariana Alcoforado, publicadas em Colónia, em 1669. Avançámos pelo largo e untado corredor. A porta aberta desembocava numa divisão enorme. No seu interior 1332 exemplares de "Bruma Azul do Desejado", gravado por Frei Hermano da Câmara, em 73 com o Quarteto 1111, divididos em duas partes iguais e dispostos simetricamente em duas estantes nas paredes Nordeste e Sudoeste. Sabiamos ter penetrado o reduto do 'Salão Bicarbonato de Sódio': o Panaceia e a sua corja estavam perdidos. No chão uma carta do Motary Clube a convidar o crápula para um dos seus jantares, no qual seria apadrinhado e medalhado. Nada que não estivesse já previsto...
Saímos e embalámos pela estrada íngreme o nosso fogoso DKV. Mais à frente, em fuga, as tropas do Diácono, 37 descontentes ortodoxos dos "Apóstolos de Santa Maria", comunidade fundada pelo conçonetista-frade, também conhecidos por "Arautos da Misericórdia Divina". Faziam-se transportar num Seddon Mk6 do ano 1952, blindado e 'adaptado ao combate do demo', de acordo com a faixa colocada no vidro traseiro. O vetusto motor Perkins P6 tinha de arranjar forças para transportar dois tanques em pvc, contendo, cada um, 333 litros de água benta no tejadilho, estando ambos ligados a um aparelho de aerossóis sónicos capaz de pulverizar tudo e todos num exorcismo desesperado. A imagem daquela máquina gigante de micro-pulverização de água benta em suspensão no ar, a descer a colina ao som da voz de Hermano Vasco Villar Cabral da Câmara, com 37 bravos 'apóstolos-arautos arrependidos', de túnicas amarelas e toucas cor-de-rosa, empunhando os enchouriçados e doutrinários 'tubos da justiça' era arrepiante. Os 'tubos da justiça' consistiam nos '69 mandamentos alternativos do Místico Panaceias', impressos em formato A4 e enrolados. No seu interior, um chouriço de S. Manços, especificamente desenhado para caber no tubo, misto de código de conduta, bastão e ração de combate.
Orlando Manilhas, furioso, cortou caminho e, quando o velho autocarro chegou ao cruzamento, já nós o aguardávamos. Panaceias ligou os pulverizadores e todos entoavam epicamente, em simultâneo, trinta e sete composições diferentes do monge-fadista. Suportámos sem pestanejar. Subitamente, um dos apóstolos começou a cantar 'Cavalo Ruço' de Nuno da Câmara Pereira e o caos gerou-se num ápice. Os trinta e sete arautos da misericórdia fraquejavam e soçobravam um após o outro, deixando os justiceiros tubos de papel com chouriço entregues ao pó da terra. O Diácono tentava animar as hostes aumentando o débito de água benta e gritando 'Todos a uma só voz!! Não vos desgraceis!! Conservai os Tubos da Justiça, não sois nada sem Eles!!!'. Foi uma questão de tempo para que a capitulação se consumasse ali, perante o nosso olhar paciente e a nossa postura de aço.
Repatriado Panaceias para a sede da agência e desmantelada a sua organização, estávamos agora em condições de proceder ao confronto dos documentos encriptados. Estava mais longe o fim do nosso mundo como o conhecemos. "Mal por mal, estamos melhor como estamos" desabafava, exausto, o Orlando. Talvez... Veremos!

4.8.09

Aeroporto de Maseru, Lesoto, esse olimpo de contradições encaixado, para o bem e para o mal em plena África do Sul. As indicações obtidas em Ushuaia não deixavam qualquer margem para fracasso. Revelava-se o líder da Grande Ofensiva! Procurar o auto-proclamado Diácono Panaceia, criatura nascida em 1948, na modesta aldeia de Brufe, era mais difícil que encontrar gelo nos trópicos.
Esperava-me Deolindo Fronhas. No corpo, o traje académico de Coimbra; no exterior da cabeça, um boné das 'Carnes Fronhas', salsicharia que a sua hirsuta esposa comandava em Durban; no interior da cabeça, um imenso vazio: "Aqui tens a chave! Boa sorte!" Olhei em redor e deduzi que seria o carro verde escuro com uma inscrição na porta 'Gabriel Alves AB-/Rui Tovar O+'. Entrei no DKV de 1962 e, com o girar da chave no canhão da ignição, soltou-se das goelas do leitor, oportunista, a voz de Clemente: 'Zzzz, sou uma abelha, sempre em busca do mel..." Cortei o pio àquele intragável tratado de apicultura pseudo-popular e arranquei com destino a Teyateyaneng. Aí recolheria o único operacional de que necessitava, Orlando 'Furioso' Manilhas. " Fizeste boa viagem, amigo Toutinegra?" "Regular, gente estranha no avião..." "Não sejas racista..." "Não é isso! À minha frente vinham dois tipos que só falavam com um vibrato impressionante..." "É gente que se vem oferecer ao Panaceia! Falam todos à Frei Hermano da Câmara!" "Foi o que me pareceu! Seria sempre gente ligada a Câmaras, ao frade Câmara ou ao Câmara Pereira... aquele vibrato..." "Sim, terrível... Bem, segue em direcção a Maputsoe e depois segue em direcção a Thaba Tseka! Rápido!" "Mas... este caminho é mais longo..." "Sim, mas bem mais bonito..."
Chegados ao destino, restava-nos o ultimatum ao Panaceia. Custava-me a hipocrisia, relativamente a esta operação, dos membros do distrito 1967 do Motary Clube. Eles tinham informações falsas que não hesitaram em facultar. Teriam de fazer melhor se me queriam fora do Lesoto! Seguiríamos o rasto do azeite Extra Virgem da Cooperativa Agrícola de Moura e Barrancos. O Diácono não passava sem ele, o golpe seria certeiro.
A passagem por Berlim, intensa, cheia de revelações relativamente aos processos de recrutamento pendentes, mostrava a vitalidade da agência em terras europeias. Tempo de ir para outras paragens: 'There is no rest for the wicked' e a alta espionagem, como a alta costura ou a alta cozinha são sempre a mais incompreendida pedra angular do progresso humano.
Num piscar de olhos, aterrava em Ushuaia, rumo a Tolhuin: o fim do mundo, literalmente. Ali, na costa Leste do Lago Fagnano, aguardavam-me o quase esquecido Ubaldo Matildo Fillol e Mario Alberto Kempes, dois dos heróis do mundial de 78. Fillol, 'El Pato' continuava prudente, à guarda-redes; Kempes continuava explosivo, à artilheiro. De cinco em cinco minutos repetia a sua maior glória, os dois golos marcados à Holanda na final... Kempes surgiu na 'Panaderia La Unión' vestido de bailarino de flamenco e 'El Pato' totalmente camuflado com o seu fato de aborígene: 'Los nativos, Touti, siempre los nativos." Tolhuin significa, em língua Selkknam 'parecido a coração', repetia Fillol. Ao longe via-se uma pickup Mazda de cor alaranjada com um tosco condor autocolante no tejadilho. "Es Antonio Maidana, el surdo." Riram ambos ruidosamente. "Eu também sou 'surdo', excepto a disparar as quinze balas da minha IMI SP-21 Barak! Nem todos os portugueses se deixam enganar. Sou o Toutinegra, Pato, tens de fazer melhor!" Rimos todos: era a sua partida preferida, a confusão 'surdo-sordo'... Fillol seria facilmente um Badaró argentino... Fomos ter com Maidana que nos esperava. O Canhoto, como era conhecido no mundo lusófono, estivera como mercenário a soldo dos franceses na Guiné com o insondável Coronel Camões, em 67, e ficara sempre disponível. Era, presentemente, o dono de uma peixaria-livraria, um conceito do fim do mundo. Era, no sentido mais hardcore possível, um dos grandes nomes da secreta argentina, 'el tiburón de La Plata', 'el Tarzán de San Martin'! "Que camuflgem exótica! Porque está vestido de Carmen Miranda?" "No es camuflaje. Trabaja como 'drag queen' en Ushuaia y tiene un espectáculo por la noche." Achei prudente não comentar. Entreguei a 'El Surdo' o exemplar de São Banaboião anacoreta e mártir, de Aquilino Ribeiro. Olhou-me com respeito e disse-me com emoção contida: "Entre nosotros se ha echo presente el espíritu de Héctor Casimiro Yazalde..." "Achei prudente não comentar, desta vez para não ferir susceptibilidades: Kempes não suportava a concorrência, nem morta e, na verdade, a famigerada fórmula do bolo de requeijão já tinha dado a volta ao mundo encriptada nos mais diversos livros e não havia maneira de ser feito o cruzamento definitivo com o Estatuto da Carreira Docente Universitária. Mais grave ainda, intensificava-se a movimentação das forças afectas à Grande Ofensiva, liderada pelo Diácono Salvador Panaceia desde o seu reduto inexpugnável, sem que as garantias da parte da nossa rede fossem inequívocas. Acenei como sinal de respeito mas impunha-se que o meu périplo fosse cada vez mais célere. Deixou-me na mão, como quem oferece um talismã, um talão com a senha de acesso ao bar de strip em Ushuaia onde o duro agente encarnaria Maria do Carmo Miranda da Cunha, o rouxinol de Marco de Canavezes. De dentro da pickup saía uma gravação de Alô... Alô?, gravada com Mário Reis e o Grupo do Canhoto... Saí, esperando que, no final do seu frutado e emplumado show, alguém me desse, finalmente, a cópia remasterizada do clássico mudo Adiós Argentina, de Mario Parpagnolli, do longínquo 1930... Hasta la vista, amigos y "Don't cry for me..."

14.6.09

Enfrentaria enfim Berlim pelas projecções ósseas do crânio, sabendo em que me metia. Esta expressão, aludindo às lides tauromáquicas, nunca foi do meu agrado mas é, ainda assim, eficaz. E antes na cara do touro do que como rabejador.
A entrada por Leste, após o suave tocar do Boeing no solo de uma das pistas de Schönefeld, a viagem tornada ainda mais curta pelo Ford Granada 2.8 Ghia stationwagon, de 1980, conduzido por Yilmaz Nasreddîn, a chegada ao apartamento na Schützenstrasse, pela calada da noite. A voz de Volkan Konak, interpretando Gardaş na espantosa alta-fidelidade da viatura fez-me ficar mais um pouco no banco de trás: “Pouco falámos. Como estás?” “Bem, sabes que não me atrapalho”, respondeu no seu fluente português aprendido com empenho e talento, por amor eternamente jurado a Adrilete Sezões, portuguesa, nascida em São Lourenço de Mamporcão, criada cidadã do mundo, residente em Berlim, detentora da “Azeitona Dourada” de 1992, distinção conferida por coragem, astúcia e eficácia extraordinárias, reveladas no terreno. “Queres ficar já aqui ou ir jantar connosco. A Adrilete gostaria de ter rever.” “Fica para depois. Tenho ainda muito que fazer e desfazer até ser dia outra vez...” “Compreendo. Amanhã, ponto V, 12.00.”
Deixei as coisas no apartamento. Ainda andei uns metros. O peso do ‘Mauer Museum’ sentia-se, como um manto, a prova da ‘gewaltfreien kampf’. As inscrições com o traçado do muro no chão, o sobrevivente Café Adler, no 206 da Friedrichstrasse, frente ao folclore do Checkpoint Charlie e do seu “You are leaving the American Sector”, tudo quase silencioso, quase memória a materializar-se.
Estanquei estes pensamentos e, deixados os ‘pastéis de massa tenra’ no apartamento, passei pela ‘Trattoria Lungomare’, na bem próxima Krausenstraße. Esperava-me aí o muito alemão e nosso agente Arkadius Göhre, recrutado em S. Bento de Ana Loura, na mesma fornada da “Didi” Sezões, como à data era conhecida. Este porto seguro de boa comida era insuspeito, mesmo para as agências mais desconfiadas. Zeev Munweiss, o agente Mossad mais volatilmente mortífero do Hemisfério Norte já ali almoçara uma carbonara explosiva com um arrependido das Brigadas Essadim al-Kassar. Tudo fora gravado, encriptado, transcrito e as cópias enviadas sob a capa do livro de Júlia Pinheiro Não sei nada sobre o amor. Na mesa seis, Zeev declarou o seu amor a Ahmed e este, lacrimejante, pediu-lhe que o deixasse eclipsar-se em Berlim para sempre. Diz-se que Zeev tem faltado aos alertas de missão da Mossad. Guardaremos esse segredo para sempre, embora o Arkadius me tenha referido que alguém julgara ter visto Zeev no muito ‘gay friendly’ Hafenbar. Trocámos as peças ao som do Conjunto Diapasão o que é, só por si, um teste à concentração... a voz de Marante... Enfim, Arkadius descobrira esta pérola... “Deixaste os ‘pastéis’ no apartamento?” “Claro, quem os vai buscar?” “A Didi, disfarçada de camponesa soviética.” “Porquê? “Queres que a reconheçam?” “Pois... vocês saberão o que fazem.” “Céptico, Toutinegra?” “Nunca, apenas a testar, sabes que é importante na vossa avaliação a validação e ressignificação simbólica dos procedimentos...” “Claro!”
Saí, voltei ao apartamento e chamei o Yilmaz: “Podemos estar a comer gato por lebre!” “A Didi já sabia. Há dois meses que o Arkadius perdeu o Norte. Falaste-lhe na ressignificação dos procedimentos e ele respondeu ‘Claro’” “Exacto. Assim fica tudo confirmado. É pena.” “A Didi já tem outra estrutura em processo de constituição. Terás de autorizar apenas a verba. O Zeev é nosso!”
Finalmente uma luz ao fundo do túnel: tínhamos Zeev e o Zeev tinha a nossa protecção. Uma nova era para a APEDIR. Nascia o sol, apenas tempo para uma visita à Unter den Linden, da qual talvez fale mais tarde e, no ponto V, às 12.00, o Ford Granada: ao volante Adrilete “Didi” Sezões. “Sabes que podes aspirar a ser agraciada com a ‘Azeitona Dourada’ de 2009? Arriscas-te a isso...” “É um prazer rever-te. Tens aí uma cópia do Livro da Júlia Pinheiro para leres no avião. E agora, segura-te bem. O meu Yilmaz é calmo a conduzir. Eu não brinco em serviço.”
E não brincou embora algumas montanhas russas sejam mais lentas do que o regresso a Shönefeld. “Até à próxima. Tens aí tudo o que precisas. O das Murtas aguenta-se?” “Vai-se fazendo. Ainda saudosista mas já maduro, sabes...” “Perfeito! Agora olha para a esquerda... Sim, é o Zeev...” “E o outro? É o...” “Sim... Toutinegra, outros tempos pá ...” “Pois... É a ressignificação de...disso.”

26.4.09

Ocorreu-me o mesmo que no primeiro episódio relatado neste espaço. Subitamente, a premência de ir a Nova Iorque. Subitamente não via ponta de um corno! "O impossível não acontece duas vezes: roubaram-me de novo as lentes", pensei. Ouvi em bom português: "Estão aqui umas novas, Toutinegra!" O gravador, programado para as oito e cinquenta e dois, disparou esta novidade. Aldemiro Capão, abençoado com o previsível cognome de 'Al Capone' português, rei dos meandros do Meatpacking District e das suas surpresas, reservara uma desnecessária troca de lentes para me presentear... o costumeiro alaredear do dinheiro. Tinha pouco tempo para explorar mas deu para ver claramente: esta zona já não é o que era: o mundo obscuro de talhantes, prostitutas e 'reis da noite' de dedo ligeiro no gatilho, o odor a gangster saído de espelunca de alterne tinham dado lugar a uma zona 'chic'. Lera, numa daqueleas revistas de viagens, que aquele, entalado entre os bairros de Chelsea e West Greenwich Village, era o lugar para FPPO, 'for pretty people only'. Nem Al nem eu podiamos ser catalogados como 'pretty people'. Bem, eu talvez... em sentido muito lato, ele...
Mas agora o nosso negócio era mesmo carne, 'meatpacking' ou, em abono da verdade, evitá-lo. Como diria a outra, já abundantemente citada, "não há coincidências" e o facto de ter encontrado uma lata de atum Tenório à saída do loft ' so fashion' que o Al me disponibilizou, tinha uma leitura simples. Vieram-me à memória as palavras do meu primo Godofredo Buganvíllia: "Às vezes, caro primo, uma lata é apenas uma lata, como um charuto é apenas um charuto. Outras vezes tens de ler o que está na lata..." Obcecado com a excelsa qualidade da referida marca de atum, o primo Godo referia-se estritamente ao prazo de validade do peixe sabiamente acomodado nas latinhas com a foto de um senhor portador de hirsutas patilhas. Havia contudo ali mais verdade do que aquele pobre diabo alguma vez pode congeminar, bem para lá do facto de ser, como ele reiterava 'uma empresa que garante atum não alimentado com rações transgénicas'. Tratámos da libertação dos dois estagiários portugueses cuja chegada a Bujumbura, Burundi, esteve por um fio. Para eles, identidades novas, casas novas, novas oportunidades, diria um certo engenheiro. Por que motivo foram ter a Nova Iorque, àquele lugar, às mãos do assassino carniceiro Pippo Tragollini será um mistério que não poderei jamais revelar. Reste ao leitor o consolo de saber que tudo terminou bem, à excepção de se ter comprometido a secção do Burundi. Nada que eles não tenham já resolvido.
Fez Al questão de me levar a sua casa. Um outro loft, muito design, muito dinheiro investido em ser o 'tuga fashion' da zona. A denúncia ignóbil vinha do sistema de som que, por todo o lado fazia ecoar a voz de capão do Armando Gama, repetindo sem dó aquilo que, se tivesse dito ao ouvido de Valentina Torres, teria sido não apenas um pequeno passo para o Armando mas, sobretudo 'a giant leap for mankind' :"Linda, linda, esta balada que te dou..."
O adeus a NY com a evocação e a saudade das maravilhas que as doces mãos de Ercíla Franjoso (sempre recusou o Capão do marido) podem fazer. É provar os seus bolos fintos e perceber porque foram à loucura tantas gerações de gente daquele 'Meatpacking District' e por que razão Aldemiro Capão tem o património imobiliário que tem: "Não há coincidências", não há mesmo.
Já no avião, um exemplar autografado de A arte de fazer barris sem aduelas, de Wilhem Blöch, traduzido por Vasco Garça Moira. Uma surpresa, em tantos sentidos... "Para o TFuturista, o meu nome escrito a oiro. Que enfrentes bem Berlim e pelos cornos o toiro."

19.4.09

(Relatório de Toutinegra das Murtas: referência 02/ST-TdM)
"A entrada do clube Tahiti é como se esperava...escura, enfumarada, garrida, generosa em corpos. Cheira a puro havano, suor, sacrifício e papoila. Estou condenado, conseguirei resistir-lhe ? Do bar insinuam-se as duas adolescentes turcas, gesticulando lubricamente para que as siga através duma empanada artesanal. No varão, dança acrobaticamente uma mulher já acerejada, mas elegante, carnes firmes, de rosto caliginoso e padecido. É Maria Irene, a Tigresa, como foi conhecida, num tempo ido em que todos os paises dignos tinham o seu grupo activo, fosse a Euskadi ta Askatasuna, de Maria Irene, as Brigate Rosse, o IRA ou a Rote Armee Fraktion. Agora começo a perceber tudo, estou em Stuttgart, a fundação da RAF, terei sido atraído para uma armadilha? Ainda tínhamos contas a acertar...não consigo deixar de olhar para Maria Irene, o tempo passou benevolamente por ela, a graciosidade com que se move em nada se assemelha ao que me lembro dela.
Não a via há cerca de 20 anos, altura em que eu ainda trabalhava para a FIRMA e só micava em Território Nacional. O calor na margem esquerda é abrasador e pelo meio das bonitas Cistus ladanifer não se vê nada. Desço até ao Chança pela enésima vez e nada dos etarras que se espera que venham assaltar o antigo paiol das minas pelos explosivos que lá se encontravam enterrados, antes da nossa investida. Dias antes, após uma sessão de confissão forçada ao som de "Ai malhão, malhão / Fora a foice e o martelo / Abaixo os oportunistas / E os fascistas do Marcelo", um FP, "cujo nome não se pode dizer por ser politico eminente", tinha informado a FIRMA que iria ser transaccionada uma quantidade significativa de explosivos entre as FP e a ETA e que a Tigresa viria pessoalmente mediar o negócio.
O ponto de passagem seria uma barca no Rio Chança e que o destino seria um veículo já em Espanha, provavelmente em Rocha Peluda, devido à proximidade com o Quartel-general do movimento em Chalet del Coto. Pena do Corvo, Horta dos Coelhos, Alcaria, Barranco do Vale Covo, Serrão, Geraldos, Cerro dos Ladrões, Fonte da Medronheira, Chumbeiro e Horta da Perdigoa, já cerca de Santana de Cambas, tudo vasculhado sem descanso, em cima duma fiel R80GS e nada da Tigresa. Opto por regressar ao Paiol, na margem da Barragem grande, encosto a GS a um eucalipto, desfruto da sua sombra, observo as Hirundo daurica. Aqui não sou útil. A FIRMA tem as imediações do Paiol bem protegidas. Soa o alarme. Foi identificada actividade suspeita junto ao Malacate. Apresso-me na direcção do antigo poço, mas já vou tarde. Posicionados na boca do dito poço n.º 6 e na Torre do Relógio, os Bascos fustigam os operacionais da FIRMA com paiolas de Barrancos, Tâmaras frescas, Satsumas e Topinambos. Os operacionais da FIRMA posicionados em frente às oficinas, em campo aberto, caem que nem Turdidae. Valorosos, Arlindo Lampreia e Domitília Velela vão tentando ripostar com Escorcioneira e Batata-doce, pelo menos até à chegada dos companheiros que se encontravam no Paiol. Perdemos bons companheiros naquele dia. Ao longe, uma das 3.000 G3 desviadas pelo Capitão Fernandes para armar os Conselhos Revolucionários, vai esquartejando o que resta da FIRMA. No corpo a corpo degladiam-se a Narceja e a Galinhola. Com a chegada dos reforços de artilharia, as posições bascas são bombardeadas com Farinheira, Morcela e Chouriço Mouro. É impossível respirar com o pó da canela, pimentão-doce e orégãos misturados com o enxofre das pirites cúpricas. Espirra o Lusitano, bufa o Basco. Arlindo Lampreia, já estucado, afoga-se numa poça de Lomos Embuchados. Há bascos em debandada, borrados pelo excesso de inalação de especiarias várias. Entre eles destaca-se uma mulher, jovem, olhos cinzentos, roupa militar caqui, boina guevariana, é ela quem vai dando cobro à retirada basca, é a Tigresa. Ao som de "Druze Tito, mi ti se kunemo, / da sa tvoga puta ne skrenemo/" entoado pelo Joaquim Réblochon, aquem nunca conseguimos tirar a veia marxista, limpo as marcas daquele Fuet Extra que me atingiu em cheio e corro para a fiel GS, no encalço de Maria Ines. A perseguição decorre pelo antigo caminho-de-ferro mineiro na direcção Sul. Eu na GS, os Bascos num C303 Laplander. Passamos a toda a velocidade pelo cenário de podridão, desperdício e abandono, ao jeito de Hayao Miyazaki, em Moitinhos e Minas Quarto, o Laplander não me dá hipóteses e acabo por perdê-los. À sorte tento o desvio na direcção de Lagoa e Fonte da Medronheira, a mais provável travessia do Chança.
A barca já vai a meio, sem os explosivos, mas muitos companheiros precisam de ser vingados. Numa tentativa desesperada e em evidente desvantagem númerica lanço o derradeiro ataque, a partir da cota 102, usando um lança morteiros municiado com maracotões de alcobaça.
A barca cede à precisão lusa e afunda nas águas rápidas do Chança levando com elas os 4 bascos e a Tigresa...julgava eu até hoje."

7.4.09

Aos caros leitores o ardiloso labor do 'novo' agente, Toutinegra das Murtas.
Relatório da missão em Estugarda (data encriptada):

"Caro Irmão Sylvia,

Relato desde Willy-Brandt Straβe, com vista para Mittlerer Schloβgarten e para a Hauptbahnhof, com a estrelinha a rodar em cima, lembrando-me o 300SL Roadster, da Kienle Automobiltechnik, que vi no aeroporto, quando aqui cheguei. Sei que aguardas um relatório do ritual iniciático em Lvov, mas terás que ser paciente, pois ainda me encontro em recuperação devido às garras afiadas da Tamara, que apesar de moldova, não compremeteu. De volta ao Meridien e à missão em Stuttgart. Tenho que admitir que Herr Berg deve ser dos concierges mais simpáticos que conheci e que o contacto das adolescentes turcas que me forneceu, para o encontro naquele clube na esquina entre a König e a Eberhard, determinante. Depois do que tinha visto no S Bahn quando elas se cumprimentaram fogosamente à minha frente, sabia que tinha que as ver novamente e que seriam elas a receber a encomenda. Pena que as bandeirinhas na carpete do Hotel não tenham feito o seu trabalho e que o significado da mensagem se tenha perdido pela mudança da homografia, provavelmente devido à acção de um qualquer refugiado zairiano a trabalhar aqui. Nada a temer, Herr Berg já tinha tratado de tudo e eu apenas teria que contornar o gigante Markus Friedrich, sacristão da Stiftskirche, que policiava o altar-mor, para arrancar um pedaço da barba de granito de um dos guerreiros que compunha o cadeiral, ou não seria aceite na Mesquita da Praia de Ouakam em Dakar, donde espero escrever-te daqui a uns dias. Desde logo colocava-se a questão de como entrar? A partir dum cabo lançado por uma das torres do Alten Kanzlei em Schillerplatz ? Ou talvez a partir do telhado da Loja da Montblanc, ao lado da Louis Vuitton, em Stiftstraβe? Mas aí corria o risco de me deparar com o Conde e ficar a descoberto. Havia ainda mais uma hipótese: saltar a totalidade da Am Fruchtkasten, aterrar na inclinada segunda água e entrar por um dos vitrais diagonais da pequena torre. "Assim seja", dizia o Pastor Vosseler, quando me estatelei em cima de um certo Conde de Württemberg ali sepultado. Rápido como um panthera onca e de martelo de geólogo em punho, enquanto a assembleia gritava pelo seu pastor, pensado que eu seria um qualquer islamita de Karachi, quebrei a barba a um dos guerreiros, contornei Herr Friederich, que ainda me conseguiu desequilibrar e falhar o arnês à primeira tentativa. Nada que uma vaporização de concentrado de Alprazolam não acalmasse. De regresso à pequena travessa, foi correr para o interior do parque subterrâneo do Commerzbank, onde me aguardava a polaca Natalya (a loira que recrutaste em conjunto com o Faneca), no seu mui discreto 356 B T5, de 1960, vermelho, com os estofos preto, enfim... o cabelo loiro a esvoaçar, os olhos verdes, as sardas junto ao nariz, a pele branca leitosa, o decote generoso. Apesar dos seus 42 anos, uma desgraça completa. Lá partimos para Fellbach, onde a peça de granito ficaria em segurança até à minha partida. O Kai trataria bem dela, já que o Rodrigo estava de férias. Comprei as D'Addario necessárias para entrar no clube e regressei de S-Bahn, no S2 ou no S3, já não me recordo. Quando sai em Stadmitte ainda ribombavam sirenes e pânico pelas ruas, mas nada que uma troca de peruca e calças de fato de treino, Beckenbauernianas, porque "Das Kaiser" será sempre "Das Kaiser", não tivesse já resolvido. A toda a pressa por Rotebühl Platz, 2 clicks para admirar a obra de Mendelsohn, Kaufhaus Schocken e Oβwald, a torre Tagblatt, antes de entrar no desviante clube Tahiti, onde me aguardavam as Turcas."
Aguarda-se na SAUDADE (Seguimento de Acontecimentos Únicos Directamente pela Agência Discreta para Encaminhamento) os restantes relatórios.

21.2.09

Toutinegra das Murtas contratada, o Mundo mais seguro. Hiperbólico? Talvez, veremos.
De Varsóvia a Berlim é rápido mas nunca se o itinerário implicar a passagem por Vilnius para levantar o Certificado Internacional do novo agente, junto de Kauskas Vistulis, o discreto cançonetista do underground kitsch lituano, o temível 'Jaučiai' Vistulis. Também não encurtava o percurso a passagem por Lvov, para o ritual iniciático de Toutinegra das Murtas.
De Vilnius falarei eu, de Lvov, o TdM.
"Sveiki atvykę į Vilniaus" nem sempre quer dizer 'Bem vindo a Vilnius'. E, neste caso, sabia que as atenções de todas as agências teriam os seus olhos voltados para mim. Daí que não tenha arriscado e tenha chegado como representante da Volvo em Moscovo. À questão "De onde vem e o que vem fazer aqui?", respondi no meu melhor russo "Я представитель Volvo в Москве, и я знаю, литовском рынке." Perante o olhar carrancudo dos inspectores de fronteira, pedi perdão e disse: "Aš atstovas Volvo Maskvoje ir aš žinau, į Lietuvos rinką." "Ah!" e sorriram. Assim, como representante da Volvo que quer conhecer o mercado lituano, a simpatia aumentou, em especial quando lhes disse que Vilnius superava Moscovo onde só queriam Audis e Mercedes! "Mercedes, Audi automobiliai žaisti. Žmogus yra žmogus, kuris turi "Volvo". Sveiki atvykę į Vilnių!" Este entusiasmo do inspector era auspicioso: Audis e Mercedes são para brincar. Homem que é homem tem um Volvo, numa tradução literal do seu fortíssimo lituano.
Lá fora, à minha espera, Eugénio Maldonado, residente em Vilnius desde a sua paixão e consequente recrutamento por Lionginas Binkauskas, eminente professora da Faculdade de Medicina da "Vilniaus universiteto". Do casamento resultaram dois filhos, Adérito Binkauskas Maldonado e Joaquina Binkauskas Maldonado e uma longa e valorosa carreira que lhe valeu o cognome de "Guaxini do Báltico". "Que tal é esse Toutinegra das Murtas?" " Vais ver com os teus olhos, um dia. Para já tens de confiar que a BIRRA está reactivada e em boas mãos. Ele não é virgem nisto, embora lhe falte dimensão internacional. É promissor." "Ó Maldonado, e esta música é o quê?" "É do Andrius Mamontovas, foi o meu Adérito que me deu. É música moderna daqui. Se quiseres tenho aqui o último do Ruizinho de Penacova! É demais. A Lionginas fica louca com as músicas do rapaz!" "Não, deixa ficar o Mamontovas... E o certificado? Sabes que vou directo daqui para Lvov?" "Claro e é lá a iniciação?" "Sim, tudo pronto e muito simples" Eugénio tirou do porta-luvas do Volvo PV 444 de 1954, impecavelmente restaurado, um salame de chocolate. "Começa a comê-lo no caminho. Quando te souber a vinagre, pára e desfaz o resto, assim que puderes, lê o que está escrito no talão e saberás o que fazer. Ainda falas e lês bem lituano?" "Kalbėjimas lietuvių panašiai važiuodami dviračiu!" "Bem, não será bem como andar de bicicleta mas continuas fluente..." " E nem tenho de me encontrar com Vistulis, o Boi?" " Os amigos servem para isto também! Não me esqueço de quando me deste a mão nas Ilhas Faroe, na malfadada Tórshavn... A estas horas estaria todo tatuado e com piercings nos sítios mais...." "Chega!... Somos amigos, pronto. Isso chega."
Saí de Vilnius sem dar uma volta pela cidade, sem ver como estavam as coisas desde que fora ao casamento do Eugénio e da Lionginas, Geninho e Gininha, para os amigos. Em Lvov esperava-me o Toutinegra das Murtas. E o vinagre... já Dona Lilita viera com essa do vinagre...

17.2.09

Concurso Terminado

Acta de selecção

Tal como previsto no Edital (cf. post anterior), este post vem dar o concurso por encerrado.
O concurso decorreu com total transparência e, considera-se assim que o neo-agente Toutinegra-das-Murtas se converteu ao serviço da causa, de alma e coração. Por ser verdade e tudo aquilo que vem em actas, atestados e declarações do tipo 'para os devidos efeitos', termina este processo.
Deverá o agente aguardar a senha e poderá assim integrar a próxima missão 'asap'.
Algures, 17 de Fevereiro de 2009

Edital

Estão abertas candidaturas secretas e discretas para constituição de unidade de elite.
Digo isto porque mais não posso.
As candidaturas serão aceites nos comemtários a este post e terminarão, sem apelo, assim que seja editado o post seguinte.
O número de agentes a contratar será de 1 (um), pelo que a selecção será feita mediante critérios claros para o comité de selecção mas secretos para os candidatos. A isto não se chama injustiça mas sim eficácia e poder discricionário. Acima da democracia do funcionamento da Agência está o superior interesse daquilo que ela protege.
Algures, 17 de Fevereiro de 2009

28.8.08

Sinagoga Ortodoxa de Varsóvia, quinze e trinta. Um fato de peluche simulando a presença de toupeira macho com cerca de metro e oitenta de altura indiciava a presença de Boniek. Sempre estava de toupeiro e não de toureiro. Deixou-me o envelope que recebera do adido cultural da embaixada do Uzbequistão. "Vês depois, à vontade no avião." " Avião?" "Sim, convém que saias hoje ainda. Também não estás cá a fazer nada!" "E aqueles 'agentes' todos do futebol, o Chalana, o Maniche" "São sósias..." "Do IF, Idalino Faneca!!! Eu desconfiei, sabes... mas são muito convincentes!" "Conheceste o Faneca?! Tu estiveste com ele?" Estive uma vez no centro de formação para sósias do Faneca. É impressionante. Mas o que fazem aqui?" "Eles estão a representar o que a equipa do IF escreveu no guião. Vêm participar na V Convenção Anual de Cromos da Bola que decorre agora no Hotel Jan III Sobieski. Há um monitor do IF na janela do quarto 504 do Hotel Campanile, do outro lado da praça. Com uns binóculos, controla-lhes o movimento. Agora, se queres saber a verdade, eu acho que eles só vieram para..." "... para se mostrarem aos nossos serviços! Claro, o IF é como os agentes dos jogadores de futebol... Bem, Boniek, Já tenho o envelope diplomático; dá-me as instruções e a senha. O destino já sei quel é. " "O grande Toutinegra a ler nas entrelinhas! Boa sorte e até breve!" Foi a primeira vez que uma toupeira de peluche com bigode e porte de ponta-de-lança me abraçou efusivamente perante a indiferença dos transeuntes. Ao ouvido segredou-me a senha: "Toupeira sem vodka luta contra os estereotipos." Mais estranho era impossível. Deu-me então o talão da compra de uma garrafa de Zubrowka, 'bison grass vodka'. No verso as coordenadas. Já no taxi de regresso ao aeroporto Frederic Chopin, olhei bem para aquelas coordenadas. Talvez pudesse descansar um pouco, talvez não. Talvez...

23.6.08

Warszawa Ochota, a estação soturna quase no final da Aleje Jerozolimsky, bem mais discreta que a estação central. No autocarro 175, antes da paragem indicada, pude reparar no homem com a camisola desportiva de marca Naike, com as cores da selecção polaca. Nas costas o número 2,5 e duas letras ZB. Era ele de novo, Boniek. Deixara o bigode e adoptara rastas. Saímos por portas diferentes do enorme autocarro articulado. Esperámos que ele avançasse e pudemos então cumprimentar-nos desde que, na Vidigueira, chegara a temer o pior. "E as empadas?" "Zbigniew, mais do que as empadas temi o pior..." "Estes jogadores que por aqui purulam... novos agentes..." "Pululam, Boniek." "Deixa lá a correcção linguística. O importante é que Chalana não é Chalana e o Homem-Pluto é um antigo mordomo do Arturo Tijuana, o mais temível agente equatoriano." "Sim, sem dúvida..." " E a questão das latas de sardinha? Como ficou?" "A BIRRA tratou de tudo a estas horas mas a fórmula..." "Dessa trato eu." Amanhã, por detrás da Sinagoga. Irei disfarçado de toupeiro." "Toureiro, Boniek..." "Não, de toupeiro, é mais discreto! O que faria um toureiro perto da Sinagoga em Varsóvia?!" E tinha razão. Restaria saber quão normal seria encontrar uma toupeira macho perto da Sinagoga em Varsóvia. Boniek desceu as escadas que conduziam à já escura estação Ochota, não sem antes comprar um pequeno ramo de flores: "Para a minha Bonieka..." Do outro lado da praça Artura Zawiszy , em frente ao multicolor e nada discreto Hotel Jan III Sobieski, Maniche e o Pseudo-Chalana conversavam e trocavam displicentemente cromos do Euro 2008. As peças do puzzle compunham-se. Apenas o Homem-Pluto me deixava de sobreaviso. Tudo o resto seria desmascarado em breve, perto da Sinagoga.