26.4.09

Ocorreu-me o mesmo que no primeiro episódio relatado neste espaço. Subitamente, a premência de ir a Nova Iorque. Subitamente não via ponta de um corno! "O impossível não acontece duas vezes: roubaram-me de novo as lentes", pensei. Ouvi em bom português: "Estão aqui umas novas, Toutinegra!" O gravador, programado para as oito e cinquenta e dois, disparou esta novidade. Aldemiro Capão, abençoado com o previsível cognome de 'Al Capone' português, rei dos meandros do Meatpacking District e das suas surpresas, reservara uma desnecessária troca de lentes para me presentear... o costumeiro alaredear do dinheiro. Tinha pouco tempo para explorar mas deu para ver claramente: esta zona já não é o que era: o mundo obscuro de talhantes, prostitutas e 'reis da noite' de dedo ligeiro no gatilho, o odor a gangster saído de espelunca de alterne tinham dado lugar a uma zona 'chic'. Lera, numa daqueleas revistas de viagens, que aquele, entalado entre os bairros de Chelsea e West Greenwich Village, era o lugar para FPPO, 'for pretty people only'. Nem Al nem eu podiamos ser catalogados como 'pretty people'. Bem, eu talvez... em sentido muito lato, ele...
Mas agora o nosso negócio era mesmo carne, 'meatpacking' ou, em abono da verdade, evitá-lo. Como diria a outra, já abundantemente citada, "não há coincidências" e o facto de ter encontrado uma lata de atum Tenório à saída do loft ' so fashion' que o Al me disponibilizou, tinha uma leitura simples. Vieram-me à memória as palavras do meu primo Godofredo Buganvíllia: "Às vezes, caro primo, uma lata é apenas uma lata, como um charuto é apenas um charuto. Outras vezes tens de ler o que está na lata..." Obcecado com a excelsa qualidade da referida marca de atum, o primo Godo referia-se estritamente ao prazo de validade do peixe sabiamente acomodado nas latinhas com a foto de um senhor portador de hirsutas patilhas. Havia contudo ali mais verdade do que aquele pobre diabo alguma vez pode congeminar, bem para lá do facto de ser, como ele reiterava 'uma empresa que garante atum não alimentado com rações transgénicas'. Tratámos da libertação dos dois estagiários portugueses cuja chegada a Bujumbura, Burundi, esteve por um fio. Para eles, identidades novas, casas novas, novas oportunidades, diria um certo engenheiro. Por que motivo foram ter a Nova Iorque, àquele lugar, às mãos do assassino carniceiro Pippo Tragollini será um mistério que não poderei jamais revelar. Reste ao leitor o consolo de saber que tudo terminou bem, à excepção de se ter comprometido a secção do Burundi. Nada que eles não tenham já resolvido.
Fez Al questão de me levar a sua casa. Um outro loft, muito design, muito dinheiro investido em ser o 'tuga fashion' da zona. A denúncia ignóbil vinha do sistema de som que, por todo o lado fazia ecoar a voz de capão do Armando Gama, repetindo sem dó aquilo que, se tivesse dito ao ouvido de Valentina Torres, teria sido não apenas um pequeno passo para o Armando mas, sobretudo 'a giant leap for mankind' :"Linda, linda, esta balada que te dou..."
O adeus a NY com a evocação e a saudade das maravilhas que as doces mãos de Ercíla Franjoso (sempre recusou o Capão do marido) podem fazer. É provar os seus bolos fintos e perceber porque foram à loucura tantas gerações de gente daquele 'Meatpacking District' e por que razão Aldemiro Capão tem o património imobiliário que tem: "Não há coincidências", não há mesmo.
Já no avião, um exemplar autografado de A arte de fazer barris sem aduelas, de Wilhem Blöch, traduzido por Vasco Garça Moira. Uma surpresa, em tantos sentidos... "Para o TFuturista, o meu nome escrito a oiro. Que enfrentes bem Berlim e pelos cornos o toiro."

19.4.09

(Relatório de Toutinegra das Murtas: referência 02/ST-TdM)
"A entrada do clube Tahiti é como se esperava...escura, enfumarada, garrida, generosa em corpos. Cheira a puro havano, suor, sacrifício e papoila. Estou condenado, conseguirei resistir-lhe ? Do bar insinuam-se as duas adolescentes turcas, gesticulando lubricamente para que as siga através duma empanada artesanal. No varão, dança acrobaticamente uma mulher já acerejada, mas elegante, carnes firmes, de rosto caliginoso e padecido. É Maria Irene, a Tigresa, como foi conhecida, num tempo ido em que todos os paises dignos tinham o seu grupo activo, fosse a Euskadi ta Askatasuna, de Maria Irene, as Brigate Rosse, o IRA ou a Rote Armee Fraktion. Agora começo a perceber tudo, estou em Stuttgart, a fundação da RAF, terei sido atraído para uma armadilha? Ainda tínhamos contas a acertar...não consigo deixar de olhar para Maria Irene, o tempo passou benevolamente por ela, a graciosidade com que se move em nada se assemelha ao que me lembro dela.
Não a via há cerca de 20 anos, altura em que eu ainda trabalhava para a FIRMA e só micava em Território Nacional. O calor na margem esquerda é abrasador e pelo meio das bonitas Cistus ladanifer não se vê nada. Desço até ao Chança pela enésima vez e nada dos etarras que se espera que venham assaltar o antigo paiol das minas pelos explosivos que lá se encontravam enterrados, antes da nossa investida. Dias antes, após uma sessão de confissão forçada ao som de "Ai malhão, malhão / Fora a foice e o martelo / Abaixo os oportunistas / E os fascistas do Marcelo", um FP, "cujo nome não se pode dizer por ser politico eminente", tinha informado a FIRMA que iria ser transaccionada uma quantidade significativa de explosivos entre as FP e a ETA e que a Tigresa viria pessoalmente mediar o negócio.
O ponto de passagem seria uma barca no Rio Chança e que o destino seria um veículo já em Espanha, provavelmente em Rocha Peluda, devido à proximidade com o Quartel-general do movimento em Chalet del Coto. Pena do Corvo, Horta dos Coelhos, Alcaria, Barranco do Vale Covo, Serrão, Geraldos, Cerro dos Ladrões, Fonte da Medronheira, Chumbeiro e Horta da Perdigoa, já cerca de Santana de Cambas, tudo vasculhado sem descanso, em cima duma fiel R80GS e nada da Tigresa. Opto por regressar ao Paiol, na margem da Barragem grande, encosto a GS a um eucalipto, desfruto da sua sombra, observo as Hirundo daurica. Aqui não sou útil. A FIRMA tem as imediações do Paiol bem protegidas. Soa o alarme. Foi identificada actividade suspeita junto ao Malacate. Apresso-me na direcção do antigo poço, mas já vou tarde. Posicionados na boca do dito poço n.º 6 e na Torre do Relógio, os Bascos fustigam os operacionais da FIRMA com paiolas de Barrancos, Tâmaras frescas, Satsumas e Topinambos. Os operacionais da FIRMA posicionados em frente às oficinas, em campo aberto, caem que nem Turdidae. Valorosos, Arlindo Lampreia e Domitília Velela vão tentando ripostar com Escorcioneira e Batata-doce, pelo menos até à chegada dos companheiros que se encontravam no Paiol. Perdemos bons companheiros naquele dia. Ao longe, uma das 3.000 G3 desviadas pelo Capitão Fernandes para armar os Conselhos Revolucionários, vai esquartejando o que resta da FIRMA. No corpo a corpo degladiam-se a Narceja e a Galinhola. Com a chegada dos reforços de artilharia, as posições bascas são bombardeadas com Farinheira, Morcela e Chouriço Mouro. É impossível respirar com o pó da canela, pimentão-doce e orégãos misturados com o enxofre das pirites cúpricas. Espirra o Lusitano, bufa o Basco. Arlindo Lampreia, já estucado, afoga-se numa poça de Lomos Embuchados. Há bascos em debandada, borrados pelo excesso de inalação de especiarias várias. Entre eles destaca-se uma mulher, jovem, olhos cinzentos, roupa militar caqui, boina guevariana, é ela quem vai dando cobro à retirada basca, é a Tigresa. Ao som de "Druze Tito, mi ti se kunemo, / da sa tvoga puta ne skrenemo/" entoado pelo Joaquim Réblochon, aquem nunca conseguimos tirar a veia marxista, limpo as marcas daquele Fuet Extra que me atingiu em cheio e corro para a fiel GS, no encalço de Maria Ines. A perseguição decorre pelo antigo caminho-de-ferro mineiro na direcção Sul. Eu na GS, os Bascos num C303 Laplander. Passamos a toda a velocidade pelo cenário de podridão, desperdício e abandono, ao jeito de Hayao Miyazaki, em Moitinhos e Minas Quarto, o Laplander não me dá hipóteses e acabo por perdê-los. À sorte tento o desvio na direcção de Lagoa e Fonte da Medronheira, a mais provável travessia do Chança.
A barca já vai a meio, sem os explosivos, mas muitos companheiros precisam de ser vingados. Numa tentativa desesperada e em evidente desvantagem númerica lanço o derradeiro ataque, a partir da cota 102, usando um lança morteiros municiado com maracotões de alcobaça.
A barca cede à precisão lusa e afunda nas águas rápidas do Chança levando com elas os 4 bascos e a Tigresa...julgava eu até hoje."

7.4.09

Aos caros leitores o ardiloso labor do 'novo' agente, Toutinegra das Murtas.
Relatório da missão em Estugarda (data encriptada):

"Caro Irmão Sylvia,

Relato desde Willy-Brandt Straβe, com vista para Mittlerer Schloβgarten e para a Hauptbahnhof, com a estrelinha a rodar em cima, lembrando-me o 300SL Roadster, da Kienle Automobiltechnik, que vi no aeroporto, quando aqui cheguei. Sei que aguardas um relatório do ritual iniciático em Lvov, mas terás que ser paciente, pois ainda me encontro em recuperação devido às garras afiadas da Tamara, que apesar de moldova, não compremeteu. De volta ao Meridien e à missão em Stuttgart. Tenho que admitir que Herr Berg deve ser dos concierges mais simpáticos que conheci e que o contacto das adolescentes turcas que me forneceu, para o encontro naquele clube na esquina entre a König e a Eberhard, determinante. Depois do que tinha visto no S Bahn quando elas se cumprimentaram fogosamente à minha frente, sabia que tinha que as ver novamente e que seriam elas a receber a encomenda. Pena que as bandeirinhas na carpete do Hotel não tenham feito o seu trabalho e que o significado da mensagem se tenha perdido pela mudança da homografia, provavelmente devido à acção de um qualquer refugiado zairiano a trabalhar aqui. Nada a temer, Herr Berg já tinha tratado de tudo e eu apenas teria que contornar o gigante Markus Friedrich, sacristão da Stiftskirche, que policiava o altar-mor, para arrancar um pedaço da barba de granito de um dos guerreiros que compunha o cadeiral, ou não seria aceite na Mesquita da Praia de Ouakam em Dakar, donde espero escrever-te daqui a uns dias. Desde logo colocava-se a questão de como entrar? A partir dum cabo lançado por uma das torres do Alten Kanzlei em Schillerplatz ? Ou talvez a partir do telhado da Loja da Montblanc, ao lado da Louis Vuitton, em Stiftstraβe? Mas aí corria o risco de me deparar com o Conde e ficar a descoberto. Havia ainda mais uma hipótese: saltar a totalidade da Am Fruchtkasten, aterrar na inclinada segunda água e entrar por um dos vitrais diagonais da pequena torre. "Assim seja", dizia o Pastor Vosseler, quando me estatelei em cima de um certo Conde de Württemberg ali sepultado. Rápido como um panthera onca e de martelo de geólogo em punho, enquanto a assembleia gritava pelo seu pastor, pensado que eu seria um qualquer islamita de Karachi, quebrei a barba a um dos guerreiros, contornei Herr Friederich, que ainda me conseguiu desequilibrar e falhar o arnês à primeira tentativa. Nada que uma vaporização de concentrado de Alprazolam não acalmasse. De regresso à pequena travessa, foi correr para o interior do parque subterrâneo do Commerzbank, onde me aguardava a polaca Natalya (a loira que recrutaste em conjunto com o Faneca), no seu mui discreto 356 B T5, de 1960, vermelho, com os estofos preto, enfim... o cabelo loiro a esvoaçar, os olhos verdes, as sardas junto ao nariz, a pele branca leitosa, o decote generoso. Apesar dos seus 42 anos, uma desgraça completa. Lá partimos para Fellbach, onde a peça de granito ficaria em segurança até à minha partida. O Kai trataria bem dela, já que o Rodrigo estava de férias. Comprei as D'Addario necessárias para entrar no clube e regressei de S-Bahn, no S2 ou no S3, já não me recordo. Quando sai em Stadmitte ainda ribombavam sirenes e pânico pelas ruas, mas nada que uma troca de peruca e calças de fato de treino, Beckenbauernianas, porque "Das Kaiser" será sempre "Das Kaiser", não tivesse já resolvido. A toda a pressa por Rotebühl Platz, 2 clicks para admirar a obra de Mendelsohn, Kaufhaus Schocken e Oβwald, a torre Tagblatt, antes de entrar no desviante clube Tahiti, onde me aguardavam as Turcas."
Aguarda-se na SAUDADE (Seguimento de Acontecimentos Únicos Directamente pela Agência Discreta para Encaminhamento) os restantes relatórios.