12.3.07

Batiam as oito, oito da noite certinhas. À saída do Francisco Sá Carneiro, o meu Pedras Rubras, o inefável táxi do Cardoso, Adelino Cardoso, fiel mas temperamental motorista da fase galaico-duriense do Grão de Bico. Via-se claramente a chapeleira com o revestimento felpudo e o cão de cabeça oscilante com o cachecol do F.C. Perafita. Dirigi-me à porta da frente do lado esquerdo: a porta traseira do mesmo lado já havia há muito cessado de funcionar. Nunca se soube se havia sido intencional ou não mas, no táxi do Cardoso, se alguma vez aquele produto da indústria automóvel nipónica chegou a ser um táxi, entrava quem ele queria, por onde ele queria. A abertura da porta do Datsun 220 C de 1973 confirmava aquilo que, de fora, se adivinhava: no leitor de cassetes, a fita castanha de crómio era convertida nas músicas do pequeno Saúl, o álbum “Os Pitos”, de 1997. Sentei-me, desviando um saco de plástico que ocupava o espaço para os pés. “Boa noite, Cardoso. Como passas?” “Menos mal…” “Leva-me ao Palácio de Cristal.” “Já lá estás…” Fez-me sinal com os olhos e com a cabeça para que pegasse no saco de plástico. Lá dentro, uma miniatura do Palácio de Cristal com um bilhete dos STCP colado, no verso do qual se podia ler “Lá dentro a menina dança, cá fora enche-se a Pança.” Era tudo o que precisava saber: um encontro com o Pança à porta de um lugar da noite. Olhei para o porta-luvas, do qual pendiam uma foto autografada da Aurora Cunha e um pequeno busto de José Veiga com uma coroa de espinhos. “Estás a olhar porquê?... Esse homem é um mártir, ouviste?” Não questionei a afirmação. Há muito que o Cardoso idolatrava o Veiga e abominava o Benfica. “Sofre mais esse pobre na Luz que um Cristo…” “Se tu o dizes, Cardoso… Olha, o que é que está a dar aí pela noite… Sabes que não faz o meu estilo… é em serviço” “És é parvo, sempre foste! Temos duas possibilidades…” “Tens carta branca!” “Posso passar pela casa da minha sogra?... É ali em Rio Tinto…” “Passa, por mim tudo bem… Tenho é fome…” “Como diz o outro, tomei a liberdade de lhe dar algo: um molete com carne assada. O molete é do Carlitos, da Cruz de Pau, marido da Dulcininha. A carne assada é a receita da tia da minha cunhada, a irmã da Rosete, de Águas Santas.” Comecei a comer deixando a mini Cristal preta no saco. “És o mesmo maricas de sempre, Toutinegra…Vais –me dizer que não bebes em serviço, não fumas em serviço, não… poupa-me. Não tens remédio.” Num abrir e fechar de olhos, deixávamos para trás Rio Tinto. Soube-me bem ir passando de novo os olhos por todo aquele Porto... “Podes calar o pequeno Saul, Adelino? “Não, impossível… apaga-se-me a alma, Toutinegra...” Areosa, Fernão de Magalhães, Praça Velasquez, Rua da Constituição, Rua da Alegria... “O que é isto?” “É o ‘Penthouse’, Toutinegra... vês algo que te interesse?” “Não, não é aqui que o Panças pára, nem faz o estilo dele...” “Podias ter dito logo... vamos ao que interessa...” Rampa da Escola Normal, a vertigem de sempre amplificada pelo Datsun fumegante, Santa Catarina, Rua Gonçalo Cristóvão... “O ‘Pérola Negra’?” “Claro, olha para ali! Não, mais abaixo!” “O Panças...” “Eu fico aqui à espera, ‘Ich muß funken!” O Adelino aproveitava estas pausas para a sua paixão, o radioamadorismo, denunciado pela profusão de antenas erectas no tejadilho do carro. O alemão era herança da Frida Schloft, uma agente alemã que, em 82, estivera de serviço em Pedras Rubras e tivera um 'affair' escandaloso com o Cardoso. Andei uns dez metros, seguindo o rasto atordoante do Jovan Musk Oil. Sussurrei “Lá dentro a menina dança...” “Aqui, Toutinegra." O Panças vestira o fato de gala, riscado, com a camisa Triple Marfel bem aberta até ao terceiro botão, deixando vislumbrar o tapete hirsuto que lhe cobria o peito e o cordão de ouro, oferta do padrinho, devoto de Reinaldo Teles. Pôs a mão dentro do peito e, ruminando um palito já meio esfarelado, retirou, de um bolso interior minúsculo, um papel de mercearia com a indicação ‘fórmula’. Subitamente, o Panças contorceu-se com dores e agarrou-se ao peito. “Respira com calma, Panças!” “Foi o carago do cordão de ouro. Fiquei com um pêlo preso!” Enquanto o Panças dava solução ao problema do pêlo, voltei, calmamente, ao táxi do Cardoso. Abri o pedaço de papel pardo e podia ver-se claramente que se tratava da fórmula do bolo de requeijão de João B. Tinha nas mãos, simultaneamente, a segunda peça do pacote diplomático e a pista para a missão seguinte. “Leva-me à pensão, Adelino. Amanhã sigo para baixo e preciso de descansar num local discreto.” “Sem espinhas. Sabia que havias de vir aqui ao menino”, respondeu o Cardoso com uma gargalhada que abafou as recomendações de tempero para o bacalhau que o pequeno Saúl insistia em, de forma recalcitrante, debitar.

3 comments:

filipelamas said...

Caro Toutinegra,

Que bom ter-te de volta! Como sabes, o Tretas sentiu a tua falta! A inteligência e argúcia do que escreves faz falta aos nossos dias! Cá estaremos todos para nos deliciarmos com as próximas aventuras!
Um forte abraço!

rocky said...

Só o regresso da Toutinegra poderia tapar o buraco negro que a sua saída temporária da blogosfera provocou! Gostei muito de ler esta aventura, sobretudo porque o Bico, Grão de Bico, cumpriu a velha promessa de uma paragem mais demorada pela Invicta cidade portuguesa.

rtp said...

E eis que o mês de Março traz, não só um sol radiante, como também a ressureição deste espaço hilariente (até rimou!)!
Muito bem!
Para novas gargalhadas!
Eu a fazer o requiem e os blogs desaparecidos voltam ambos! :-))