13.6.07

Passando por Beja, avistei, ao longe, um pouco à frente da primeira rotunda, uma patrulha que, aparentemente, seria da Brigada de Trânsito. Obedeci ao sinal para encostar e parei, abrindo o vidro. “Bom dia!” “Bons dias... Bela viatura... É sua?” “Não, é de um compadre meu.” “Compadre... Pois há aqui um compadre que quer falar consigo. Acompanhe-me até à nossa viatura.” Simulei a saída, fechei a porta e acelerei forte. O UMM nem esboçou um movimento e a suposta patrulha nem esboçou qualquer reacção. Avistei o Adelino pelo vidro traseiro e não era a hora para o ajuste de contas. Sempre os disfarces foleiros... desta vez o de dono de talho tirolês de caça grossa. Virei para Aljustrel. Sem qualquer imodéstia, o Adelino não tinha pedalada para mim. Continuaria a tentar apanhar-me, continuaria a escapar-lhe com facilidade até à hora do nosso pequeno e privado juízo final. Assunto encerrado! Continuei até Odemira e apenas parei em Maria Vinagre. No Rogil seria demasiado arriscado: um dos padeiros fora, em tempos, um famosíssimo agente búlgaro, Janós Kenyeres, e continuava perigosamente no activo, tendo sido inclusivamente um dos esteios do descalabro comercial da marca Old Spice. Um café e sessenta e tal litros de gasolina depois, já a estrada serpenteava em direcção a Aljezur e já se avistava o castelo com as suas duas torres e as casas a pintar de branco a encosta. Segui a estrada que atravessa a vila e tomei o cruzamento à direita, rumo ao mar. Vencidas as curvas e a subida, virei, novamente à direita, para a Praia do Monte Clérigo. A chegada à última curva que dá acesso à praia, é uma espécie de lugar mágico, de ponto de encontro entre o céu e a terra, o céu e o mar. Sem pressa, para já, decidi ficar por ali um pouco, a sentir a brisa. Senti que alguém se aproximava. Espreitei pelo retrovisor e reparei que se tratava de um indivíduo disfarçado de delegado de propaganda médica, ou de agente funerário; confesso que esses dois disfarces me baralham, até a mim... Abri o vidro e ouvi: "Coloca o DVD que o Chico te deixou." Acedi ao pedido. Lá dentro o convite para um jantar no restaurante 'O Zé', em plena praia do Monte Clérigo, e a indicação de onde poderia encontrar os cromos que me permitiriam resolver a situação das latas de sardinha. Tudo na zona, tudo muito à mão, tudo com um certo sabor a prémio, a descanso merecido. O DVD terminava com um clip de 'Nothing Else Matters', música do desagrado do Chico mas uma homenagem às minhas preferências musicais, pelo menos a parte delas. O homem, entretanto, retomara o caminho de volta a Aljezur no seu carro comercial, ou para enterrar alguém, ou para vender uma qualquer marca de medicamento que ainda não se sabe bem o que faz mas que sabe a morango.
Descrevi a curva, lentamente, e lentamente fui descendo em direcção ao parque de estacionamento central da praia. De frente, o restaurante 'O Zé', provavelmente ainda da propriedade do Sr. Zé 'Larico', ou na mão de seu genro, Demóstenes. Ficaria para mais tarde até porque não sabia quem seria a companhia para jantar. Fiquei apenas em calções de banho e dirigi-me para a areia. Mergulhei na água fria e saltei aquelas ondas enfurecidas mas que pareciam reconhecer o meu corpo. Senti-me criança outra vez, ali. Dentro em breve teria de voltar ao mundo dos crescidos. Previa complicações e, a breve prazo, a saída do ninho, Portugal Por agora não... apenas mais uma onda a derrubar-me cumplicemente.

11.6.07

O cheirinho da sopinha de cação, os coentros, o alhinho e o azeitinho quente eram um ‘must’ na casa do Chico e da Arlete. Chegar ao fim da tarde, quando o calor de início do estio abranda e o ar já se deixa respirar, é ter a mágica oportunidade de ser envolvido n um pôr-de-sol deslumbrante. Perguntei pelos miúdos. “Estão à da prima Celeste, é melhor.” O Chico, sem a sua cubana barba, estava quase irreconhecível. A Arlete estava na mesma, mais ruga, menos ruga. “Então, deixaste-te apanhar pelo Arquimínio...” “Apanhar? Enganar... bom, pelo menos por algum tempo. Sabes que nunca pensei que a minha prima Acácia pudesse ter razão...” “Sabedoria de prima velha...” “E com bigode”, acrescentou a Arlete. Riram à vontade, o ambiente mais descontraído. “Queres matar saudades?” “Força!” O Chico foi lá dentro e trouxe um velho leitor-gravador BASF, agitou uma fita antiga: “É dos Mineiros de Aljustrel! São do melhor, já está é gasta mas que se lixe! Preferes os Ceifeiros da Cuba?” “Está óptimo assim.” O resultado era, em bom abono da verdade, desagradável. A má qualidade da velha cassete, a péssima qualidade do vetusto leitor, a fraca reserva energética das pilhas, tudo contribuía mais para um sacrifício do canal auditivo do que para um matar de saudades. Salvava-se a boa vontade, de todos, até dos Mineiros de Aljustrel. “Chega aqui, Toutinegra.” O Chico conduziu-me até uma espécie de escritório. “Está aqui a parte da História que interessa contar...” Nas paredes, cartazes de lutas antigas, de uma tourada por altura das festas de Nossa Senhora do Carmo, em Moura, terra natal do seu dilecto cunhado, o Feliciano Abóbora. Mais ao lado, numa espécie de pequeno nicho, uma fotografia do Chico com Vítor Damas e uma fotografia virada para baixo com uma pedra em cima. “E isto, Chico?” “Podes ver, tu podes ver...” Disse isto, olhando em volta, como se quisesse certificar-se de que ninguém, nem mesmo as paredes, o estava a observar. Retirei o pequeno seixo e virei a foto, já amarelecida. Era uma foto de João Pinto, o mítico lateral direito do F.C.P. que o Chico tinha processado no seu ressabiado ‘fotoshop’ manual, apresentando o dito jogador com um par de protuberâncias cranianas dignas de um vogoroso alce. “Então Chico, o que é isto?” “Ele fez-se à minha Arlete, um dia. Gajo que faça isso... acaba nisto!” “Este!?” “Nem imaginas... Estávamos em Viena, em 1987, em missão e tivemos de ir ter com o Grão de Bico em plena final da Taça dos Campeões. Na marcação de um canto, vejo este moinante a piscar o olho à Arlete. Ela nem deu por isso mas o Futebol Clube do Porto, para mim, deixou de ter lateral direito. Ninguém se faz ao piso à minha Arlete e está tudo dito. Nem no Inferno vai ter descanso, o cabrão!” “Bem, calma... Podes desabafar comigo, não foi por isso que vim mas...” “ Mas, eu sabia que virias, era apenas uma questão de tempo. A fórmula do bolo de requeijão... somos nós que a temos.” “Não pode ser!” “Pode, pode. O Boniek não foi ter contigo a Beja? O Arquimínio não te tentou limpar o sebo? Não foi o Panças quem te deu a suposta fórmula? Não precisas de responder... É ‘sim ‘a tudo... E sabes o melhor? A dita fórmula não era mais do que o código que levava às latas de sardinha! Confuso? Parece que estás a começar a ver tudo, compadre... Foste apanhado no cruzamento de duas forças cósmicas: a fórmula do bolo e as latas de sardinha!” “Como pude ser tão ingénuo...” “Safaste-te porque a experiência já age em ti, sem que o premedites. Estás para o agente secreto como o Espírito Santo está para o Deus Pai!” “Mas tu, agora, és religioso?!” “Não, mas não posso desperdiçar oportunidades de fazer piadas com tão boa matéria prima! Agora vai, despede-te da Arlete e pega no saco que ela te vai entregar. Vais deixar aqui este Volvo e vais levar outro. O Grão de Bico deixou-me um fundozito de maneio para eu providenciar “as melhores soluções” para ti, o seu discípulo de eleição. Tens as intruções num ‘dvd’ eo dinheiro no porta-luvas. “ Dei um sentido beijo à Arlete que me entregou um saco de papel com dois disfarces alternativos: um, de apanhador de percebes da Costa Vicentina, outro de vendedor de óculos de contrafacção da Ágata Ruiz de la Prada. No fundo do saco, uma pequena tira de papel, escrita em árabe, com a seguinte frase: “Se sentires algo amargo, dirige-te ao ‘Sargo’ e pensa que tudo o que é teu, está no ‘Rasto do Judeu’.” Liguei o meu novo Volvo XC90 V8, liguei o sistema de navegação e marquei as coordenadas rumo a Aljezur. Alguma estrada pela frente, Jeff Buckley por companhia.