1.6.08

Entrei cautelosamente no restaurante. Sabia do ritual de acesso às mesas e às boas graças da dona e cozinheira-mor. No altar da sua bancada, junto do seu fogão, fiel amigo imaculado, Dona Lilita preparava o seu sábio arroz de peixe. Este forçado almoço em Vila do Bispo, deixando para trás Aljezur, simbolizava o fim de todos estes meses de recolhimento na Praia do Monte Clérigo, Entegara a Demóstenes uma cópia autografada da Biografia não oficial de Eusébio, da autoria de Manuel F. Alegre, exemplar número três de uma limitadíssima tiragem de oito. Duas sentidas lágrimas correram pela face de Demóstenes: “Se eu mandasse, ainda jogava... o Pantera...” Recebera, em troca, a senha para o Café Correia: “Se queres comer, não venhas a correr.” Debitei então a senha a Dona Lilita que, tendo esquecido as palavras mágicas repetia sem cessar “Se não tens paciência nem vale a pena sentar! O meu arroz é para sair bem feito!” Deixei-a falar, do alto do seu metro e quarenta e oito e imbuída do poder da sua varinha-colher-de-pau mágica. Tive de interromper, contudo, arrancando a diva da seu fervor místico e disciplinador: “Isto é a senha, Dona Lilita!!! Sou o Toutinegra Futurista!!” “Ah... Já podias ter dito, moço! Vamos ao escritório.” Gritou ao marido que continuasse a confeccão do pitéu e carregou num botão violeta: “É a música ambiente. Assim, ninguém ouve a gente, moço! Sou pouco esperta, sou!” E era, à sua maneira. O roufenho sistema sonoro perfurava os tímpanos com um “Jesus, Jesus, Jesus!”, intercalando cada chamada do Cristo com uma sequência de palminhas ritmadas. Frei Hermano da Câmara, no seu vibrato místico e épico, pelo menos para a minha agente de ligação, ia avançando à medida que os nossos passos se detinham às portas do escritório de porta vermelha, a Jerusalém Celeste de Lilita e esposo. “Este moço canta que até me arrepia toda!” “Também a mim, Dona Lilita, também a mim...” Agora entra, moço, e cala-te mas é!” A porta fechou-se atrás de nós. Calei-me, mesmo que nem sequer tivesse tentado falar. À minha volta, os cortinados do Benfica que forravam a totalidade das paredes, sucedâneo de papel de parede, faziam o conjunto perfeito com uma colecção de calendários da Adega Cooperativa de Lagos. Retirou da escápula o calendário de 1977, desviou o cortinado e, de um pequeno orifício na parede, retirou um rolo de papel pardo, com nódoas de azeite e uma monumental lambuzadela de tomate: “Passa para cá o livro do Eusébio e toma lá esta charenga!” Dei-lhe o exemplar número sete, em troca do rolo de papel. Desenrolei-o e, por sobre o cinzento e as nódoas, podia ler-se “Para Lilita, com amor”, assinado Aníbal e com a inscrição final “Boliqueime, 1960”. Olhei para ela, boquiaberto. “Cala-te e está calado, mas é! Não é nada do que estás a pensar, moço! E o meu arroz de peixe pode levar um homem à loucura... Molha o papel em vinagre quando chegar a hora. Vais perceber. E agora vamos ao que interessa!” Arroz comido, caminho percorrido até ao aeroporto de Faro, destino Varsóvia, via Bruxelas. Na fila 17 do Airbus da Brussels Airlines, Fernando Chalana. A seu lado um homem com uma inusitada máscara de Pluto. Chalana olhou-me de lado, inclinou a cabeça para o centro do corredor e murmurou à minha passagem ”Não é com vinagre que se apanham moscas, nem aves, nem pássaros, nem outros mamíferos.” Sentei-me umas filas mais atrás e meditei nas palavras de Chalana: quais seriam agora os critérios de recrutamento? Chalana? Ele mesmo que acabara de debitar mais uma pérola a um cidadão polaco que passava: “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura, ou faz mossa, ou aleija, ou coiso.” No seu colo, agora à vista, o que parecia ser um osso de brincar, talvez do homem-Pluto... A Chalana já lhe tinhamos visto o bigode, o olhar vago e o discurso errático. Provérbios ainda não. Mais uma prova viva de que o ser humano é versátil... ou talvez não...

4 comments:

Joaninha said...

Bom regresso!

jguerra said...

Olá. Claro que me lembro de ti. E como sempre história de mistério bem divertida e muito bem redigida.
espero o resto para breve.
Um abraço

rtp said...

Saúdo o regresso da "Toutinegra Futurista" com mais uma aventura hilariante!

Claudia Sousa Dias said...

Quando for ao algarve (ainda se escreve asim?!)tens de me dizer a morada para eu provar o Pitéu e descrever o ritual...

Bjo


CSD