O Torquato estava, como era seu apanágio, na casa de banho. Um susto monumental, aquando de uma saída precipitada de Fukuoka, deixara como cicatriz permanente o cólon irritável, pelo que, um pouco de pressão induzia neste bravo homem uma diluviana descarga intestinal. Conheci-o em Funabashi, quando ambos fomos enviados a Fukushima, na altura em que a ilha de Honshu esteve sob ameaça de um grupo extremista de ninjas reivindicando a supremacia da carne de vaca nipónica sobre a holandesa. Debelada essa ameaça, pudemos conhecer-nos melhor. Sabia que o volume que ele deveria dar-me, bem como a password, seriam vitais para a minha saída da América Central. Deixei a mota Husqvarna num beco de Tegucigalpa e pedi uma Triumph emprestada. Era amarela mas sempre chamava menos a atenção que o rosa vivo da anterior. "Cantina La Gueisha", mais óbvio seria impossível. Entrei e perguntei pelo 'patrón'. "En su sitio." Aguardei à porta do cubículo que fazia de latrina multiusos. Pouco tempo depois, o reencontro. "Não temos tempo, segue-me." No escritório uma foto de Lili Caneças e uma impressão digital emoldurada, rodeada de flores, como num altar. "Lembras-te da Mihishi? Deu-me isto, gravado a sangue... para sempre..." "E a Lili?..." "Bem, esteve cá o Júlio, há dois anos. Tinha ganho essa foto num concurso dos pacotes de batatas fritas onduladas com sabor a presunto. Quis oferecer-ma e... não pude recusar." "Claro." Entregou-me um padaço de papel engordurado no qual se podia ler "Grande profeta Isaías, eu bem sei o que tu comias". "Ó Torquato... estas rimas das passwords estão a ficar..." "Mais baixo... As paredes têm ouvidos!" Olhei em volta e podia ver-se um conjunto de três quadros com as fotografias de três hirsutos pavilhões auriculares. "São do trio Odemira, passaram aqui há uns anos e insistiram numa fotografia de perfil, que era mais épica... deu nisto mas... sempre são portugueses e... as suas músicas fazem-me sonhar... Queres ouvir, Toutinegra, só um bocadinho? Tenho aqui já "A Igreja estava toda iluminad..." "Adoraria, Torquato, mas o tempo urge. E o volume?" "Ele correu para o outro lado da sala e a música do Trio começou a ouvir-se por todo o lado. "Desliga, Torquato!", gritei. "Mas tu pediste..." "Não, o volume da missão!" Percebi que o Torquato estava em final de carreira, os sintomas eram evidentes. E, indubitavelmente, o Trio Odemira tinha-o afectado profundamente. Enquanto, já na saída, protegia o embrulho, acelerei o passo para fugir do inevitável: " A Igreja estava toda iluminada..." O ruído da mota abafou o poderoso débito sonoro que inundou toda a rua. Parei alguns quilómetros depois. Abri o volume e deparei-me com uma versão de bolso de "O Doutor Jivago", de Boris Pasternak. Lá dentro, tudo em branco, à excepção da seguinte frase: "Os ogres são como as cebolas, às camadas." Lembrei-me da sala do Torquato... as peças começavam a fazer sentido. Para trás a estrada mexicana, à minha frente uma imagem difusa, com aroma a cebola...
No comments:
Post a Comment