12.3.07

Tegucigalpa, ao anoitecer, tem o encanto de todas as cidades do chamado narco-caribe: à medida que o sol desce na linha do horizonte, as vozes passam a ser sussuradas e, em cada esquina, ouve-se o ruído de uma arma semi-automática a ser carregada. Dirigia-me para as obras do Mercado La Isla, na esperança de encontrar pistas. Numa viela, por uma janela, via-se uma televisão velha ligada sem que ninguém, aparentemente estivesse a seguir qualquer emissão. Passava nessa noite o filme "Marcelino Pan y Vino", de Ladislao Vajda, com música de Pablo Sorozabal. Detive-me a recordar uns momentos daquele ícone do misticísmo de pacotilha, baseado na obra de José Maria Sanchez Silva. A criança todas as noitas levava pão e vinho ao Cristo crucificado, num deleite de ingenuidade, pureza e fé. Ocorreu-me então que era essa a pedra de toque. Procurei uma igreja ou uma capela. Aproximava-se a 'Feria de la Capital' e, para além de mais mortos na rua, a cidade estava mais alegre e repleta de cartazes do 'alcaide'. Estava na mesma, Ricardo Antonio Álvarez Arias, desde que o conhecemos, eu e o Júlio, em 1988, enquanto gerente da Álvarez Automotriz. Vendeu-nos uma pickup Izuzu que nos durou até à Terra do Fogo, onde a vendemos às Peças. As irmãs Peças eram duas brasileiras recrutadas pela CIA, peritas em reconverter tecnologia obsoleta. Desapareceram no dia em que transformaram um Land Rover numa ceifeira debulhadora. Julga-se que tenham sido comprometidas pelo Jesulin Arlington, um ex-futebolista peruano a jogar no Newell's Old Boys. Encontrei a tal capela, a porta entreaberta e uma lápide polida e suja, com salpicos de sangue a formar uma seta que apontava para o interior. Perto da cruz, procurei no local correspondente ao que Marcelino usava para fazer as oferendas ao seu Salvador. Lá estavam, os chouriços de Oriola, duas paiolas e uma linguiça de porco preto de montado! Maldito Arlindo Talhante! Herético, como sempre. Olhei em volta e lá estava, como sempre, uma das suas fixações, a célebre fotografia de Jaime Pacheco abraçado a João Loureiro e a Isaltino de Morais. Segui um ruído e, qual assinatura, ouvia-se, baixinho, na voz de José Cid, "Na cabana, junto à praia, entre as dunas e os canaviais..." Ao lado o disfarce. Não havia tempo a perder. Pedi uma mota Husqvarna emprestada a alguém que, na melhor das hipóteses, já dormia e seguimos para Norte, em direcção a La Ceiba. Chegámos ao amanhecer. Comecei logo a inflitrar-me na praia como vendedor de Bolinhas de Berlim. Não tardou, era mais um entre muitos outros que vendiam coisas a quem passava junto ao mar. Foi aí que reparei no vendedor de varetas para batedeiras de bolos. Dirigi-me até ele e entreguei-lhe a linguiça. "E o resto?" "O resto está bem guardado". Pela quantidade de mulheres que me cobiçavam, percebi que as paiolas não estariam tão bem guardadas assim e muito menos no sítio correcto. Abri o fecho das calças de terylene e apressei a coisa: "Vamos até àquela duna!" "Mas, Toutinegra, eu não sou desses!" "Claro, Seruca" O Adelino Seruca era violentamente homofóbico e receou o pior. Das calças retirei as paiolas. Ele observou-as. Escolheu uma primeira, mordeu-a e disse revirando os olhos "Estes enchidos de Oriola, Toutinegra, põem-me louco..." Também a mim, e as calças cheias de gordura..." Mordeu a segunda e, lá de dentro retirou um rolo de papel vegetal. Nele podia ler-se: "Entra no México. Vai até Quezalte Nango, fala com o Torquato e leva o volume até Txutla Gutierrez. Lá verás a luz! Muda de mota."

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