Nunca me questionei muito sobre os processos da diplomacia e dos serviços secretos mas, na verdade, sair do Porto, de madrugada, em direcção a Beja, para seguir posteriormente para Évora, pareceu-me uma espécie de non-sense geográfico pouco eficiente. Chegado a Beja, dirigi-me ao ponto de encontro. Já no café Luís da Rocha, em plena ‘meia-laranja’, sentei-me e pedi uma empada. Continuavam soberbas e compensaram a espera... Subitamente ouvi, sussurrada, a senha: “De noite, usas uma tocha. De dia, no Luís da Rocha”. Voltei-me e fiz sinal ao sujeito para que se sentasse. Estendeu-me a mão e disse com um sotaque que confirmei como típico do ramo lequítico do grupo ocidental eslavo: “Lembra-se de mim? Não? Zbigniew Boniek.” “Boniek? Estou perante o Boniek?” Sorriu... “Sempre pareceu que eu era um jogador de futebol, não é? E era, era bom...” “Lembro-me de si na Juventus, ao lado do Platini...” “Exacto.” “Lembro-me de si também na A.S. Roma!” “Sim, mas vamos ao que...” “Lembro-me de o Gabriel Alves se referir a si como o Príncipe do Futebol Polaco!” “Toutinegra, não temos tempo! Aliás, penso que me enviaram a mim porque sabem da sua fraqueza perante as grandes glórias do futebol da década de oitenta...” Quem mais se lembraria de mim, Zbigniew Boniek?” E tinha razão... Como tinha razão! Nem ele próprio, Zbigniew Boniek, sabia até que ponto estava a ser usado... Passei-lhe a fórmula, por debaixo da mesa: “Aqui está, passadinha a limpo, como manda a lei...” “Muito bem! Toma, é para ti! Também eu me orgulho de estar com o discípulo dilecto do Grão de Bico, nem sabes como!” Do pacote de papel emanava um cheiro nauseabundo... “Usei esta camisola no meu último jogo no mundial de Espanha, em 82.” “Obrigado, Boniek, do fundo do coração!” Saiu do café, enquanto eu pagava a despesa. Perguntei-me como tinha o Boniek conseguido comer trinta e duas empadas de galinha... Saí, em direcção ao carro. Ao volante do meu Volvo 240 de 1973, recordava os momentos mágicos em que Boniek, frente à Bélgica, marcava três golos no mesmo jogo, no Mundial de Espanha. Já perto da Vidigueira, reparei no carro de matrícula polaca abandonado à beira da estrada. Parei, temendo o pior. No banco do condutor, um pequeno envelope contendo um papel no qual se podia ler: “Sei que me enganaste. Com esta fórmula apenas se poderá fazer um bom bolo de requeijão mas nunca o bolo de João B. Está tudo bem comigo.” Ainda no envelope um cromo do Platini com a seguinte dedicatória: “Pour que Boniek puisse faire un cadeau à quelqu’un spécial.” Assinado: “Platoche”... No banco de trás, uma caixa de papel... Esquecera-se das empadas, das trinta e duas empadas... Levei-as comigo, o bom cheirinho das empadas compensaria provavelmente o da camisola do Zbigniew. Fiz-me à estrada, deixando o leitor de cassetes do Mercedes branco, a braços com uma fita de Cândida Branca Flor, a lutar contra o implacável sol do fim de Inverno, no Alentejo. Não muito longe, o posto retransmissor do Mendro. Por ali teriam passado muitas das jogadas de Boniek, convertidas em feixes hertzianos, hoje memórias... como magia...
Memórias quase póstumas de um espécime com tendências maníaco-depressivas, delírios conspiratórios e possível intolerância ao glúten.
15.3.07
12.3.07
Batiam as oito, oito da noite certinhas. À saída do Francisco Sá Carneiro, o meu Pedras Rubras, o inefável táxi do Cardoso, Adelino Cardoso, fiel mas temperamental motorista da fase galaico-duriense do Grão de Bico. Via-se claramente a chapeleira com o revestimento felpudo e o cão de cabeça oscilante com o cachecol do F.C. Perafita. Dirigi-me à porta da frente do lado esquerdo: a porta traseira do mesmo lado já havia há muito cessado de funcionar. Nunca se soube se havia sido intencional ou não mas, no táxi do Cardoso, se alguma vez aquele produto da indústria automóvel nipónica chegou a ser um táxi, entrava quem ele queria, por onde ele queria. A abertura da porta do Datsun 220 C de 1973 confirmava aquilo que, de fora, se adivinhava: no leitor de cassetes, a fita castanha de crómio era convertida nas músicas do pequeno Saúl, o álbum “Os Pitos”, de 1997. Sentei-me, desviando um saco de plástico que ocupava o espaço para os pés. “Boa noite, Cardoso. Como passas?” “Menos mal…” “Leva-me ao Palácio de Cristal.” “Já lá estás…” Fez-me sinal com os olhos e com a cabeça para que pegasse no saco de plástico. Lá dentro, uma miniatura do Palácio de Cristal com um bilhete dos STCP colado, no verso do qual se podia ler “Lá dentro a menina dança, cá fora enche-se a Pança.” Era tudo o que precisava saber: um encontro com o Pança à porta de um lugar da noite. Olhei para o porta-luvas, do qual pendiam uma foto autografada da Aurora Cunha e um pequeno busto de José Veiga com uma coroa de espinhos. “Estás a olhar porquê?... Esse homem é um mártir, ouviste?” Não questionei a afirmação. Há muito que o Cardoso idolatrava o Veiga e abominava o Benfica. “Sofre mais esse pobre na Luz que um Cristo…” “Se tu o dizes, Cardoso… Olha, o que é que está a dar aí pela noite… Sabes que não faz o meu estilo… é em serviço” “És é parvo, sempre foste! Temos duas possibilidades…” “Tens carta branca!” “Posso passar pela casa da minha sogra?... É ali em Rio Tinto…” “Passa, por mim tudo bem… Tenho é fome…” “Como diz o outro, tomei a liberdade de lhe dar algo: um molete com carne assada. O molete é do Carlitos, da Cruz de Pau, marido da Dulcininha. A carne assada é a receita da tia da minha cunhada, a irmã da Rosete, de Águas Santas.” Comecei a comer deixando a mini Cristal preta no saco. “És o mesmo maricas de sempre, Toutinegra…Vais –me dizer que não bebes em serviço, não fumas em serviço, não… poupa-me. Não tens remédio.” Num abrir e fechar de olhos, deixávamos para trás Rio Tinto. Soube-me bem ir passando de novo os olhos por todo aquele Porto... “Podes calar o pequeno Saul, Adelino? “Não, impossível… apaga-se-me a alma, Toutinegra...” Areosa, Fernão de Magalhães, Praça Velasquez, Rua da Constituição, Rua da Alegria... “O que é isto?” “É o ‘Penthouse’, Toutinegra... vês algo que te interesse?” “Não, não é aqui que o Panças pára, nem faz o estilo dele...” “Podias ter dito logo... vamos ao que interessa...” Rampa da Escola Normal, a vertigem de sempre amplificada pelo Datsun fumegante, Santa Catarina, Rua Gonçalo Cristóvão... “O ‘Pérola Negra’?” “Claro, olha para ali! Não, mais abaixo!” “O Panças...” “Eu fico aqui à espera, ‘Ich muß funken!” O Adelino aproveitava estas pausas para a sua paixão, o radioamadorismo, denunciado pela profusão de antenas erectas no tejadilho do carro. O alemão era herança da Frida Schloft, uma agente alemã que, em 82, estivera de serviço em Pedras Rubras e tivera um 'affair' escandaloso com o Cardoso. Andei uns dez metros, seguindo o rasto atordoante do Jovan Musk Oil. Sussurrei “Lá dentro a menina dança...” “Aqui, Toutinegra." O Panças vestira o fato de gala, riscado, com a camisa Triple Marfel bem aberta até ao terceiro botão, deixando vislumbrar o tapete hirsuto que lhe cobria o peito e o cordão de ouro, oferta do padrinho, devoto de Reinaldo Teles. Pôs a mão dentro do peito e, ruminando um palito já meio esfarelado, retirou, de um bolso interior minúsculo, um papel de mercearia com a indicação ‘fórmula’. Subitamente, o Panças contorceu-se com dores e agarrou-se ao peito. “Respira com calma, Panças!” “Foi o carago do cordão de ouro. Fiquei com um pêlo preso!” Enquanto o Panças dava solução ao problema do pêlo, voltei, calmamente, ao táxi do Cardoso. Abri o pedaço de papel pardo e podia ver-se claramente que se tratava da fórmula do bolo de requeijão de João B. Tinha nas mãos, simultaneamente, a segunda peça do pacote diplomático e a pista para a missão seguinte. “Leva-me à pensão, Adelino. Amanhã sigo para baixo e preciso de descansar num local discreto.” “Sem espinhas. Sabia que havias de vir aqui ao menino”, respondeu o Cardoso com uma gargalhada que abafou as recomendações de tempero para o bacalhau que o pequeno Saúl insistia em, de forma recalcitrante, debitar.
A chuva encharcou-me até aos ossos. A mota cedeu a tanta água e não houve nada a fazer. Felizmente estava já às portas de San Salvador. Para trás México e Guatemala sem parar. O livro e a frase casavam na perfeição. A frase, da autoria de Shrek reenviava para a Lili Caneças. Não fora inocente aquela foto: alguns humanos também são às camadas, como os ogres... E o Dr. Jivago é o autor dos mais famosos 'peelings' da América Central. O seu nome, Óscar Javargo valeu-lhe a alcunha. O porquê de ter de encontrá-lo descobri-lo-ia mais tarde, o endereço, qualquer um com poder económico o pode saber. Troquei alguns dólares americanos por 'colón salvadoreño' e infiltrei-me num bar. Constava que o dr. Javargo tinha mil faces. Entrei em plena Alameda Manuel Enrique Araujo e perguntei ao primeiro transeunte: "Que puedo hacer?" E mostrei-lhe uma cicatriz falsa. Estendeu-me a mão e eu apertei-lha, deixando uns trocos. Apontou para o fundo da avenida e diss-me: "Cuarenta e cinco, segunda planta." Segui as indicações. O cheiro era imundo, uma mistura de carne podre com Old Spice. Bati, esperei e disse ao ouvir alguém a chegar à porta: "A Lili manda cumprimentos." Abriu-me. Era ele próprio, Javargo em pessoa. "Entre. Que posso fazer por si? Posso remover-lhe essa cicatriz..." "Isso também eu posso fazer..." Retirei a cicatriz autocolante. Ao fundo, daquilo que seria o bloco operatório, saía o clássico "Passear contigo, amar e ser feliz, turururu..." do duo Broa de Mel. "Vamos até ao bloco operatório, não há escutas" Entrámos. Na parede uma foto de Paulinho Santos com um balão de fala: "Mais um pró Javargo arranjar!". Em cima de uma arca congeladora, um busto do Engenheiro Sousa Veloso. "Bons amigos, lembram-me Portugal..." "Muito bem, e a senha?" "Encontrarás o tal, no Palácio de Cristal" Franzi o sobrolho mas percebi tudo. Era uma chamada a casa. Tudo apontava para a invicta, nem a música deixava dúvidas. O Javargo não brincava. À saída ainda disse: "Esse Paulinho Santos era um bom..." "Amigo, Toutinegra, um bom amigo!" Não me atrevi a contrariar, saí e apanhei um taxi para o aeroporto. Poucos desenvolvimentos mas o garantido regresso a Portugal.
O Torquato estava, como era seu apanágio, na casa de banho. Um susto monumental, aquando de uma saída precipitada de Fukuoka, deixara como cicatriz permanente o cólon irritável, pelo que, um pouco de pressão induzia neste bravo homem uma diluviana descarga intestinal. Conheci-o em Funabashi, quando ambos fomos enviados a Fukushima, na altura em que a ilha de Honshu esteve sob ameaça de um grupo extremista de ninjas reivindicando a supremacia da carne de vaca nipónica sobre a holandesa. Debelada essa ameaça, pudemos conhecer-nos melhor. Sabia que o volume que ele deveria dar-me, bem como a password, seriam vitais para a minha saída da América Central. Deixei a mota Husqvarna num beco de Tegucigalpa e pedi uma Triumph emprestada. Era amarela mas sempre chamava menos a atenção que o rosa vivo da anterior. "Cantina La Gueisha", mais óbvio seria impossível. Entrei e perguntei pelo 'patrón'. "En su sitio." Aguardei à porta do cubículo que fazia de latrina multiusos. Pouco tempo depois, o reencontro. "Não temos tempo, segue-me." No escritório uma foto de Lili Caneças e uma impressão digital emoldurada, rodeada de flores, como num altar. "Lembras-te da Mihishi? Deu-me isto, gravado a sangue... para sempre..." "E a Lili?..." "Bem, esteve cá o Júlio, há dois anos. Tinha ganho essa foto num concurso dos pacotes de batatas fritas onduladas com sabor a presunto. Quis oferecer-ma e... não pude recusar." "Claro." Entregou-me um padaço de papel engordurado no qual se podia ler "Grande profeta Isaías, eu bem sei o que tu comias". "Ó Torquato... estas rimas das passwords estão a ficar..." "Mais baixo... As paredes têm ouvidos!" Olhei em volta e podia ver-se um conjunto de três quadros com as fotografias de três hirsutos pavilhões auriculares. "São do trio Odemira, passaram aqui há uns anos e insistiram numa fotografia de perfil, que era mais épica... deu nisto mas... sempre são portugueses e... as suas músicas fazem-me sonhar... Queres ouvir, Toutinegra, só um bocadinho? Tenho aqui já "A Igreja estava toda iluminad..." "Adoraria, Torquato, mas o tempo urge. E o volume?" "Ele correu para o outro lado da sala e a música do Trio começou a ouvir-se por todo o lado. "Desliga, Torquato!", gritei. "Mas tu pediste..." "Não, o volume da missão!" Percebi que o Torquato estava em final de carreira, os sintomas eram evidentes. E, indubitavelmente, o Trio Odemira tinha-o afectado profundamente. Enquanto, já na saída, protegia o embrulho, acelerei o passo para fugir do inevitável: " A Igreja estava toda iluminada..." O ruído da mota abafou o poderoso débito sonoro que inundou toda a rua. Parei alguns quilómetros depois. Abri o volume e deparei-me com uma versão de bolso de "O Doutor Jivago", de Boris Pasternak. Lá dentro, tudo em branco, à excepção da seguinte frase: "Os ogres são como as cebolas, às camadas." Lembrei-me da sala do Torquato... as peças começavam a fazer sentido. Para trás a estrada mexicana, à minha frente uma imagem difusa, com aroma a cebola...
Tegucigalpa, ao anoitecer, tem o encanto de todas as cidades do chamado narco-caribe: à medida que o sol desce na linha do horizonte, as vozes passam a ser sussuradas e, em cada esquina, ouve-se o ruído de uma arma semi-automática a ser carregada. Dirigia-me para as obras do Mercado La Isla, na esperança de encontrar pistas. Numa viela, por uma janela, via-se uma televisão velha ligada sem que ninguém, aparentemente estivesse a seguir qualquer emissão. Passava nessa noite o filme "Marcelino Pan y Vino", de Ladislao Vajda, com música de Pablo Sorozabal. Detive-me a recordar uns momentos daquele ícone do misticísmo de pacotilha, baseado na obra de José Maria Sanchez Silva. A criança todas as noitas levava pão e vinho ao Cristo crucificado, num deleite de ingenuidade, pureza e fé. Ocorreu-me então que era essa a pedra de toque. Procurei uma igreja ou uma capela. Aproximava-se a 'Feria de la Capital' e, para além de mais mortos na rua, a cidade estava mais alegre e repleta de cartazes do 'alcaide'. Estava na mesma, Ricardo Antonio Álvarez Arias, desde que o conhecemos, eu e o Júlio, em 1988, enquanto gerente da Álvarez Automotriz. Vendeu-nos uma pickup Izuzu que nos durou até à Terra do Fogo, onde a vendemos às Peças. As irmãs Peças eram duas brasileiras recrutadas pela CIA, peritas em reconverter tecnologia obsoleta. Desapareceram no dia em que transformaram um Land Rover numa ceifeira debulhadora. Julga-se que tenham sido comprometidas pelo Jesulin Arlington, um ex-futebolista peruano a jogar no Newell's Old Boys. Encontrei a tal capela, a porta entreaberta e uma lápide polida e suja, com salpicos de sangue a formar uma seta que apontava para o interior. Perto da cruz, procurei no local correspondente ao que Marcelino usava para fazer as oferendas ao seu Salvador. Lá estavam, os chouriços de Oriola, duas paiolas e uma linguiça de porco preto de montado! Maldito Arlindo Talhante! Herético, como sempre. Olhei em volta e lá estava, como sempre, uma das suas fixações, a célebre fotografia de Jaime Pacheco abraçado a João Loureiro e a Isaltino de Morais. Segui um ruído e, qual assinatura, ouvia-se, baixinho, na voz de José Cid, "Na cabana, junto à praia, entre as dunas e os canaviais..." Ao lado o disfarce. Não havia tempo a perder. Pedi uma mota Husqvarna emprestada a alguém que, na melhor das hipóteses, já dormia e seguimos para Norte, em direcção a La Ceiba. Chegámos ao amanhecer. Comecei logo a inflitrar-me na praia como vendedor de Bolinhas de Berlim. Não tardou, era mais um entre muitos outros que vendiam coisas a quem passava junto ao mar. Foi aí que reparei no vendedor de varetas para batedeiras de bolos. Dirigi-me até ele e entreguei-lhe a linguiça. "E o resto?" "O resto está bem guardado". Pela quantidade de mulheres que me cobiçavam, percebi que as paiolas não estariam tão bem guardadas assim e muito menos no sítio correcto. Abri o fecho das calças de terylene e apressei a coisa: "Vamos até àquela duna!" "Mas, Toutinegra, eu não sou desses!" "Claro, Seruca" O Adelino Seruca era violentamente homofóbico e receou o pior. Das calças retirei as paiolas. Ele observou-as. Escolheu uma primeira, mordeu-a e disse revirando os olhos "Estes enchidos de Oriola, Toutinegra, põem-me louco..." Também a mim, e as calças cheias de gordura..." Mordeu a segunda e, lá de dentro retirou um rolo de papel vegetal. Nele podia ler-se: "Entra no México. Vai até Quezalte Nango, fala com o Torquato e leva o volume até Txutla Gutierrez. Lá verás a luz! Muda de mota."
Cheguei a Quito ainda o sol não dava luz ao dia. A confusão do aeroporto com os vendedores de aves exóticas engripadas, os xailes de lã, os gorros coloridos. Subitamente vejo num poleiro uma toutinegra. Dirijo-me ao vendedor e repito: "S. Paulo na estrada para Damasco, a ETA no País Basco." O vendedor abriu a gaiola e a toutinegra voou, livre. Linda simbologia mas não tinhamos tempo para metáforas. "Depressa, vem comigo." Saímos e desaparecemos dali no pequeno furgão Dodge chei de penas e pássaros. "Põe estes adereços" Colei o bigode farto e pus umas tiras de fita-cola a esticar-me os olhos. "Agora vamos para a Loja do Chineses" "Também aqui?" "Sim, também aqui! São tantas que é a melhor maneira de ninguém desconfiar." Entrados na loja, acedemos a uma surpreendente cave. Nas paredes, colecções de Osgas emolduradas, uma camisola número sete do Deportivo Portalegrense e uma fotografia autografada dos gémeos Castro. Da boca de Dionísio Castro, saía um balão de fala, manuscrito: "Todos diferentes, todos iguais." O meu guia retirou a foto dos atletas da parede. Um nicho escavado na parede continha, para além do 'Manual de Sobrevivência do Agente Solitário', de Grão de Bico, um Código da Estrada já sujo e usado e um maço de folhas dactilografadas com letras da Tonicha encimado pelos êxitos "Tu és o Zé Que Fumas" e "Zumba na Caneca". Levantou as folhas e abriu a capa do "In Nomine Deo", do Saramago. "Aqui, coloca o Estatuto da Carreira Docente Universitária aqui dentro e retira a nova password." Guardei o talão e preparei o meu novo disfarce, a minha nova pele até Santiago. Ao fundo podia ouvir-se "O maestro da Charanga", cantado por Badaró. "É a minha sogra... não larga aquilo, já a levámos a todo o lado..." Não tinha tempo para sugestões terapêuticas para dependência de programas televisivos foleiros. Coloquei os óculos do Boloni no saco de recurso e vesti o meu fato de empreiteiro português a investir na América Latina: camisa Triple Marfel aberta, a mostrar os pêlos do peito, o já mencionado bigode, cordão de ouro a sair da camisa, barguilha semi-aberta. Lá fora esperava-me o adereço final: uma actriz venezuelana desempregada a fazer de prostituta. "Mas... é mesmo necessário?..." "Sim, eles não vêm cá só para investir, Toutinegra..." E tinha razão. Já no aeroporto, fui abordado por vários agentes imobiliários locais que me rodeavam puxando-me as roupas e dizendo "Constructor civil português, invista no meu empreendimento!!!" Espalhei uns pesos mexicanos pelo chão e eles precipitaram-se sobre eles. Pude ver, já ao longe, que se agrediam violentamente com os pesos, em especial o de quilo e meio mas um agente não sente remorsos, isso são fraquezas dos da colheita de 1969. Já no avião, pude ler a password: "Chouriço de Oriola, faquinha de ponta e mola." A actriz colocou a mão no meu colo e disse-me ao ouvido: "Faz parte do serviço." Deixou-me no colo, junto ao fecho entreaberto, uma pequena faca de ponta e mola. Faltava-me o chouriço de porco preto... Missões coordenadas pelo Arlindo Talhante...
Rumo à Patagónia Chilena! Primeira escala, Buenos Aires. Segunda escala, Quito. A ideia é andarmos sem grande lógica perto da área de destino de forma a reforçar a nossa 'cover' de turistas. Em Buenos Aires, para além do mais, tinha de recolher as palavras de activação junto de um agente local. Tinha sido agente do Maradona, no seu início de carreira, e era possível encontrá-lo nas imediações do estádio do Boca Juniors com uma écharpe cor-de-rosa ao pescoço, um cinto com uma fivela em cobre formando o número 10 e um nariz entupido de pó branco que ele garantiria tratar-se de farinha Branca de Neve. Estaria, além do mais, disfarçado de vendedor de contrafacções de refrigerantes americanos. Ao fundo, vislumbrei uma banca com latas de Poca Tola e Red Balls, este último com uma inscrição manuscrita num cartão:"Te va a dar alas". Aproximei-me e ele mostrou-me a écharpe e a fivela. "Javier?" "Si, soy jo!" "Mas... e esse sotaque?" "Tens razão, Toutinegra. Não consigo sotaque decente para o espanhol." Era Teodósio, o Melro, discípulo, como eu, do Grão de Bico mas da classe de 72, um ano fraco. "E as palavras de activação?" "Tens de beber uma Poca Tola primeiro." Bebi-a de um só trago! As latas falsificadas trazem pouco conteúdo. Soube-me a um misto de pomada para o hemorroidal com Água do Castello. "Está óptima!" "Sim, andamos a melhorá-la! Mas vamos ao que interessa. As palavras são: S. Paulo na Estrada para Damasco, a ETA no País Basco!" Achei estranho mas não se questionam passwords. Despedi-me, deixando-lhe em cima da banca dois pesos, um de duzentos gramas e outro de quilo. Agradeceu-me e disse-me para levar umas latas para a jornada. "Obrigado Melro, mas tu precisas mais do que eu, deixa estar." Vi umas lágrimas a inundarem-lhe os olhos, pura comoção, típico da malta de 72 e 87, anos fracos, muito fracos. Parti, sem mais demora. O Jeep que me deveria levar a Quito estava à minha espera. Coloquei os óculos que me permitiriam assumir o disfarce de dentista romeno convertido em treinador de futebol. Abri o meu bloco de notas e anotei, por cima do que, em tempos, Lazlo Boloni havia escrito, antes de mo oferecer: "Mandar ao Melro uma écharpe decente". Lembrei-me da forma como o Grão de Bico me apresentou o Boloni: "Toutinegra, nem dentista nem treinador de futebol, este senhor vai para o Sporting em breve. Sereis campeões." Não há coincidências... Nesse ano, Júlio Isidro planeava mais uma edição póstuma de 'O Passeio dos Alegres'... O mundo não dorme...
Jantei ontem com o Primeiro Ministro da Roménia. Foi uma noite fria, na qual procurei quebrar o gelo com uma prenda. Ofereci-lhe um exemplar de 'Equador' de Miguel Sousa Tavares. Quando ele se ía levantar da mesa, ofendido, eu disse-lhe: "Calma, excelência. Abra-o com cuidado. É a edição melhorada." Lá dentro uma biografia de Mourinho que não o tranquilizou. "Mas... é uma afronta!" "Calma, duas manobras de diversão não são demais. Abra agora." Lá dentro, o Já conhecido Estatuto da Carreira Docente Universitária. Ele acalmou-se e sorriu-me. "Portugal é um país amigo." Declarou esta amizade e pudemos passar à fase seguinte. Tínhamos agendada uma troca de prisioneiros e uma troca de cromos da Galp, da selecção nacional. Entregou-nos dois dos nossos agentes resgatados por Vassili Gogol no Lago de Tiberíades mediante a entrega dos cromos do Petit e do Luís Boa Morte. A saída em segurança do país custou-nos o Deco, o Quim e o contacto do barbeiro que trata do look ao Paulo Bento. No posto de fronteira detectei que um dos funcionário olhava para mim com insistência. O meu fato de Tirolês pô-lo de sobreaviso. Dirigiu-se a mim e disse-me: "Eusébio." "Impossível", negociei a saída com um cromo do Quaresma e uma fotografia autografada de Mário Jardel a snifar farinha Maizena no balneário. Tinha esgotado toda a minha 'poção mágica'. Era tempo de fugir ou, nas sábias palavras de Grão de Bico: "Após três ...intas, ou marcas golo ou passas a bola, ou ...odes ou sais de cima."
Jamais poderei descrever o que senti no Quénia. A miséria, a pobreza nas ruas, os esgotos a céu aberto, cimenteiras em plenas zonas de parque natural, cópias de albuns da Madonna vendidas lado a lado com os quiabos, a mandioca e os livros do Paulo Coelho. Subitamente, vejo "Não há coincidências". Era a palavra-passe. Debrucei-me e sussurei ao vendedor: "Tenho boxers de latex e sinto os testículos apertados." Ele, sem levantar a cabeça disse-me: "Toutinegra..." "Sim, Júlio. Sou eu. Mas... essa cor de pele..." "Estava a torrar amendoins no forno e... descuidei-me. Vamos até minha casa." E assim foi. Era uma casa igual a todas as outras, pelo menos por fora. Lá dentro, uma fotografia autografada de Jorge Coelho, um busto de Vítor Baía e um quadro em relevo com Valentim Loureiro. Na cozinha, ouvia-se Toni Carreira. Era um pequeno Portugal em pleno continente Africano. Senti-me em casa e disse-lhe "Cheira-me a bacalhau, como o conseguiste aqui?" Respondeu-me que, com o calor e a falta de água qualquer agente cheira ao fiel amigo. Em seguida levantou-se, deu-me um exemplar do livro de Margarida Rebelo Pinto e disse-me: "Não há coincidências, esperava-te há dois dias. Abre-o com cuidado, é a edição melhorada." Abri a capa e, no lugar do empolgante texto, estava um exemplar do Estatuto da Carreira Docente Universitária. Esbocei um protesto e ele disse-me, colocando a sua mão no meu ombro: "O Grão de Bico recebeu o Código da Estrada e sobreviveu." E tinha razão. Recebera-o das mãos de Américo Tomás, com a capa da 'Peregrinação'. Esteve três anos fora e o mundo nunca mais foi o mesmo. Cruzámo-nos um dia em Oslo. Ele ía disfarçado de domador de lontras e eu de cozinheiro moldavo. Olhei-o fugazmente mas nem falámos. No chão, um recibo da Mercearia Central, em Castelo Branco. No verso, as palavras: "Dois sabonetes de sardinha assada, um soutien de renda, uma bisnaga de Pasta Medicinal Couto, um litro de grão de bico" Senti um arrepio percorrer-me de alto a baixo com uma paragem pelo meio. Nesse ano, António Calvário lançava mais um disco... Não há coincidências.
Aterrar em Lisboa, depois de uma semana brutal no Quénia fez-me sentir um homem novo. Aquele agente do Togo disfarçado de vendedor de ursinhos de goma deixou-me de sobreaviso. Tinha sido ele quem, em tempos, tinha vendido calças de contrafacção ao Agostinho Neto e isso provocou a crise que todos conhecemos. A velha estória do Pau-de-Cabinda foi apenas uma manobra de diversão. Comprei um pacotinho de gomas e disse, enquanto recebia o troco, "I'll blow your cover if you dont get the fuck out of here." Reparei como calmamente arrumou as coisas e desapareceu. No seu lugar uma mensagem encriptada. Apanhei-a discretamente e li-a na casa de banho do aeroporto. Era um talão do Pingo Doce e eu sabia o que ele me queria dizer com isto: 'o sítio do costume'. Dirigi-me para a bilheteira da TAP e murmurei: "Arlindo, a tua sogra é uma bezerra." Em dois minutos tinha na minha mão um bilhete para 'o sítio do costume', sem check in. Puseram-mo na mão e ouvi as palavras de activação da missão: "Temos gelatina de framboesa na sanita mas não é para os teus beiços, seu boi charolês." Sabia que não tinha um segundo a perder. Lembrei-me das palavras do Grão de Bico ao deixar este mundo com uma crise de fígado provocada por caviar envenenado, oferta do A. Shevshenko, prova de que não é apenas o peixe que morre pela boca: "Tout..i...negra... Pira-te en..quanto ahh...odes."
Acordei certo dia com a noção de que me tinham roubado as lentes de contacto. E era verdade! Não via ponta de um corno! Desde que tinha regressado da Síria que me sentia tonto na altura de saltar da cama mas nunca fui gajo de me negar ao trabalho. Felizmente tinha os óculos suplentes debaixo da cama. As lentes eram de 1973, ainda do Tempo da Outra Senhora. Foram-me dados nessa altura por um estivador que conheci no cais de Roterdão. Perguntei-lhe quem era e ele disse-me que era um agente da CIA em trânsito para Leninegrado. Era ele mesmo. O seu nome era Bico, Grão de Bico, o icone da espionagem moderna estava ali, a meu lado, e disse-me: "Queres bilhetes para o concerto do Santana?" Aceitei. "Este Santana ainda vai longe", disse-me. Não chegou a vê-lo Primeiro Ministro mas o Grão de Bico nunca precisou de ver tudo...
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